Ana Paula Pessoa na Interzona

 

Construçao pxb 1

 

Interzona: Uma parte considerável de seu trabalho fotográfico envolve fusões de imagens. Trata-se de uma maneira de eliminar os clichês pela saturação?

Ana Paula Pessoa: Sim, fugir dos clichês é uma questão, mas não sei se a fusão no meu trabalho segue essa lógica da saturação, pois tento deixar vazios para a figura respirar e revelar o fundo infinito... Esse reencontro com o infinito na imagem é fundamental para sugerir quais imagens poderão entrar nesse jogo de sobreposições. Às vezes, nessa primeira operação de isolar a figura, já aparecem as sobreposições através de sombras que decepam, ocultam certas partes, criando um clima de mistério que suprime qualquer intervenção posterior. Com relação ao sentido das fusões, penso em camadas de consciência, em possibilidades de sobrepor tempos diferentes, mecanismos de hibridação, mutações pela imagem... Algumas fusões trazem um sentido mais óbvio e imediato, como quando sobreponho um relógio antigo à imagem da senhora (minha avó), outras remetem a uma atmosfera surreal, como quando associo objetos estranhos, um cágado, um corpo e um livro.

Interzona: Outros trabalhos seus – como o “CSO”, por exemplo – fazem referência direta a alguns conceitos de filósofos contemporâneos. Acha que é possível ilustrar conceitos? Ou eles são apenas motivos, estímulos para a elaboração de uma imagem?

Ana Paula Pessoa: O que te move em seu processo criativo? A literatura e a filosofia me põem em ação; para mim, são propulsores da criação. O perigo de partir de conceitos para a produção imagética é exatamente o de ser ilustrativo. Tento me afastar disso, mas há quem veja minha produção dessa maneira... Meu encontro com a obra de Artaud abalou tão intensamente minhas estruturas que suas ideias inevitavelmente apareceram no meu trabalho fotográfico. Divido minha errância no universo das imagens em antes e depois desse encontro, ele causou uma virada de perspectiva.  Atualmente experimentar tem sido mais importante do que a imagem final para mim. Crio através de um emaranhado de afetos que me conduzem a alguma proposição vivencial que gera as imagens, a fotografia como veículo propulsor de imagens e não como fim em si mesma.

 

Corpo 4

 

Interzona: No livro "A arte de escrever", Schopenhauer diz: "Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria. O tema sobre o qual se pensa é bastante diversificado, assim como o mérito que ele concede aos livros. Toda a matéria empírica, portanto tudo o que é histórico, ou físico, todos os fatos, tomados por si mesmos ou num sentido mais amplo, estão incluídos nesse caso. A particularidade de tais livros diz respeito ao objeto, por isso um livro pode ser importante seja quem for o autor. Quanto ao que é pensado, em contrapartida, a particularidade diz respeito ao sujeito. Os objetos podem ser conhecidos e acessíveis a todos os homens, mas a forma de concebê-los, o que é pensado confere aqui o valor e diz respeito ao sujeito. Por isso, se um livro desse tipo é excelente e sem igual, o mesmo vale para seu autor. (...)" Poderíamos utilizar esse conceito na fotografia? Por exemplo, um fotojornalista seria aquele cuja atividade de produção de imagens é relevante como registro de "objetos". O autor não é importante, qualquer fotógrafo com bom domínio técnico poderia produzir uma imagem de uma determinada coisa (pessoas, catástrofes naturais, guerras etc.). Ainda que as imagens produzidas por fotojornalistas variem em termos técnicos (uma abertura específica, uso ou não de flash, enquadramento), elas seriam documentais, registros de um objeto dado. Já o fotógrafo conceitual seria aquele que concebe um objeto de uma forma particular, singular, única; mesmo registrando o mundo, ele lutaria para imprimir suas concepções, sua estética, para imprimir uma "forma" particular – o que o caracterizaria como artista. Concorda com essa visão?

Ana Paula Pessoa: Concordo em parte. De fato o fotojornalista está muito mais engajado no sujeito, na história e em todos esses conceitos relacionados à cultura do ponto de vista da comunicação. No entanto, na tarefa de documentar algo ele também luta para imprimir seu ponto de vista e sua estética; a questão é que seu ponto de vista deve estar de acordo com o meio de comunicação ao qual está vinculado. Sua criação é de caráter informativo, ele deve "contar uma história", denunciar uma situação, registrar algo... Sua produção deve atender as demandas do público que consome a mídia para qual ele trabalha. Se essa mídia é "alternativa", "aberta", ele pode imprimir mais livremente sua estética e concepção sobre o fato, o que o torna mais "artista". A liberdade de criação talvez defina o quão artístico pode ser um registro... O artista é completamente livre ideologicamente. Seu compromisso é com ele mesmo, com a vida. Essa liberdade é também sua forca, pois diante de tantas possibilidades é preciso criar critérios próprios que limitem essas possibilidades criativas e o direcionem para o espectro criativo que mais se ajusta a sua estética.

Interzona: Cartier Bresson dizia que a fotografia se apresentava para ele. Uma situação específica provocava nele uma emoção intensa, o que o fazia clicar. Ele dizia que para fotografar era preciso ter os olhos, as mãos e o coração em absoluta ressonância. Sebastião Salgado disse certa vez que essa era uma visão demasiadamente romântica. Para Salgado, um homem sempre traz um mundo, uma história, uma cultura quando se depara com uma situação que resultará numa imagem. Um fotógrafo é um contemplador ou alguém que intervém ativamente numa situação, que introduz na imagem sua história, sua cultura? Retomando o tema da pergunta anterior, será realmente todo fotógrafo imprime sua “forma”?

Ana Paula Pessoa: Parece-me que ao contemplar o fotografo também intervém ativamente numa situação. Bresson foi o inventor do chamado “instante decisivo” na fotografia, e essa declaração dele que você citou tem a ver com o estar atento a esse instante, e não há nada de romântico nisso. É preciso muita sensibilidade e abertura para perceber algo que está na vida e que apenas através do seu olhar e clique pode tornar-se visível. É uma busca do extraordinário no ordinário pelo filtro do olhar sensível e atento. A linha do Salgado, a meu ver, é mais antropológica, com cunho político forte: seus projetos envolvem grupos sociais como o MST, ele trabalha com temas sociais, como no caso de Êxodos ou Trabalhadores, e claramente imprime seu ponto de vista ideológico com uma estética própria, que também inclui a contemplação como parte do processo criativo, criando atmosferas transcendentes e tornando belas cenas de miséria e dor. Então o ato de fotografar é uma ação criativa capaz de re-criar um fato e sempre será um ponto de vista, nunca imparcial, do fotógrafo diante do fato. A labuta do fotógrafo-artista talvez seja a de inserir na sua perspectiva algo de singular, a sua diferença. Essa singularidade é construída na prática, sem precipitação, e seu amadurecimento constitui o que se chama estilo, algo muito difícil de alcançar. Logo, nem todo fotografo imprime sua “forma”, pois para tal é preciso que essa ação contemplativa aliada a uma perspectiva singular sobre a vida numa repetição prática revele com o tempo a amplitude de sua empreitada.

Corpo 5


Interzona: “Aqueles que escrevem sobre fotografia escrevem apenas para aqueles que escrevem sobre fotografia”, disse Helmut Newton em uma entrevista. Os textos sobre fotografia (desconsiderando os técnicos, claro) interessam aos fotógrafos?

Ana Paula Pessoa: Não saberia responder pelos fotógrafos, me sinto cada vez mais numa fronteira entre linguagens em que a fotografia é mais um meio, apesar de ser a técnica com a qual tenho mais intimidade...  Então, me interesso por textos sobre fotografia que tratem de suas facetas criativas e efeitos sociais – como, por exemplo, os clássicos de Sontag e Barthes – para chegar aos campos expandidos da arte contemporânea em que a fotografia funciona como mais um mecanismo para a hibridação de linguagens e produção de subjetividade. Vejo que o fazer artístico, o olhar sensível, alimenta-se de várias fontes textuais como literatura, filosofia, entrevistas com artistas (aquela entrevista concedida por Francis Bacon a David Sylvester foi marcante para minha produção fotográfica, assim como os textos de Glauber Rocha e as cartas de Van Gogh). Embriagar-se dessas vozes pensantes é uma aventura que causa muitas transformações ao modo como encaramos a vida e produzimos imagens.

Encontros com Virgínia


Interzona: Antigamente, mesmo que fossem usados diversos rolos de filme, nunca se chegava à quantidade de cliques que hoje se chega numa sessão fotográfica com câmeras digitais. A edição se tornou uma coisa extremamente trabalhosa, e o acumulo de dados ocasionou novas questões sobre armazenamento. A falta de rigor quanto ao que fotografar seria o preço a ser pago pela abundância de recursos? Quais seriam os desafios e riscos em relação a esses novos instrumentos (e procedimentos)?

Ana Paula Pessoa: Falta de rigor e promiscuidade imagética! A fotografia digital é consumida feito pipoca atualmente! O que faz com que muitos fotógrafos pensem em parar de clicar e passem apenas a se apropriar de imagens existentes; ou proponham condições para produção de fotografias por grupos sociais, imagens das quais ele se apropria... São saídas encontradas para essa enxurrada de imagens... Mas me parece que essa sempre foi a ambição da fotografia enquanto instrumento técnico gerador de imagem, tornar-se o mais popular possível a ponto de instaurar definitivamente uma realidade fotográfica que se sobrepõe à vida. O desafio é ético: a seleção dos encontros... Sontag dizia que fotografar é uma ética da visão. Concordo, selecionar tornou-se imperativo exatamente por causa dessa quantidade de dispositivos facilitadores!

Interzona: Há atualmente uma sobrevalorização da técnica? A perfeição excessiva das imagens digitais, talvez seu excesso de realidade, seria sinal de empobrecimento da arte? “A arte é uma mentira. O papel do artista é convencer os outros da veracidade de suas mentiras”, dizia Paul Klee. A “mentira”, a “imprecisão”, o “erro” e o “defeito” não seriam o fundamento da concepção artística?

Ana Paula Pessoa: Concordo. A experimentação, a errância em torno da ideia, a obsessão pela imagem fazem parte do processo criativo, e essa perfeição é um empobrecimento. A sobrevalorização da técnica reflete a sociedade em que vivemos, novas especialidades surgem na área de manipulação de imagens e fazem crescer todo um mercado calcado nessa produção frenética. A fotografia que um dia foi tida como “prova” judicial, documento incontestável devido a sua capacidade de capturar o instante, apesar dos procedimentos de montagem existentes no laboratório analógico, hoje é vista com desconfiança nesse sentido, dada a quantidade de efeitos que foram incorporados e criados pela tecnologia digital. Essa ampliação de possibilidades criativas não acarreta necessariamente uma imagem artística.  O “papel” do artista do qual fala Klee está vinculado àquela outra afirmação dele, “tornar visível o invisível”, ou seja, o artista cria uma realidade própria, seu universo, onde pensamentos, sentimentos, forças aparecem, tornam-se visíveis de maneira singular.

Interzona: Ao mesmo tempo o digital parece ser capaz de levar a imagem para além da fotografia; no mundo digital, não há limites para o delírio imagético. O trabalho de manipulação das imagens pode vir a se sobrepor à tarefa de concepção/produção fotográfica. Certa pós-produção masturbatória seria inevitável, portanto, para se chegar a novos tipos de imagem, a novas texturas. Nesse mundo, há ainda lugar para o negativo?

Ana Paula Pessoa: Creio que sim, pois o negativo ou positivo (slide) mantém certas qualidades na imagem que muitos fotógrafos não abrem mão. Há também um revival de antigos procedimentos fotográficos, como o pin-hole e a Lomo, que afirmam a coexistência dessas tecnologias. Claro que acaba se tornando algo para “entendidos” da área, artistas, experimentadores da imagem, que compõem um mercado significativo. É importante pensar em incluir procedimentos tecnológicos criando um diálogo técnico ao invés de excluir e criar ranking da mais atual tecnologia sob ameaça de tornar-se obsoleta. Afinal de contas o que importa para criação artística é essa invenção, essa singularização da vida, independente da técnica utilizada.

C.S.O.

 

Interzona: Muitos fotógrafos manifestam certo temor quanto à banalização da fotografia. A princípio, devido à facilidade de acesso aos equipamentos fotográficos e aos programas de edição, qualquer um pode produzir imagens de certa qualidade técnica e se considerar fotógrafo. Essa banalização é realmente um problema? Ou é uma ameaça apenas aos fotógrafos profissionais, que podem perder seus empregos?

Ana Paula Pessoa: É um problema em relação à produção de subjetividade, em como estamos lidando com essa acessibilidade tecnológica... A dificuldade de compor uma boa imagem é a mesma de antes! Qualquer um pode clicar, mas quem cria uma imagem realmente interessante, uma imagem que não seja apenas bela, mas que afete o outro no seu modo de perceber as coisas? Essa tarefa continua difícil e para poucos... Os fotógrafos profissionais não perderão seus empregos por causa dessa banalização; com efeito, devem ter surgido mais fotógrafos profissionais, mas o serviço de books para modelos, fotografia de crianças, registro de eventos etc continua forte, e os clientes querem além de técnica impecável um olhar diferencial, o que acarreta uma dificuldade a mais para esse meio.

Ritual 1

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A liberdade de criação talvez defina o quão artístico pode ser um registro... O artista é completamente livre ideologicamente. Seu compromisso é com ele mesmo, com a vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É preciso muita sensibilidade e abertura para perceber algo que está na vida e que apenas através do seu olhar e clique pode tornar-se visível. É uma busca do extraordinário no ordinário pelo filtro do olhar sensível e atento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O “papel” do artista do qual fala Klee está vinculado àquela outra afirmação dele, “tornar visível o invisível”, ou seja, o artista cria uma realidade própria, seu universo, onde pensamentos, sentimentos, forças aparecem, tornam-se visíveis de maneira singular.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A dificuldade de compor uma boa imagem é a mesma de antes! Qualquer um pode clicar, mas quem cria uma imagem realmente interessante, uma imagem que não seja apenas bela, mas que afete o outro no seu modo de perceber as coisas? Essa tarefa continua difícil e para poucos...