Tatyana Jacques na Interzona

 

Man Ray

 

Interzona: Em um filme de Rogério Sganzerla a impagável Helena Ignez nos diz que "a pior poluição é a sonora". Além da ligação, cantada pelo Futurismo, entre o ruído e as sociedades urbanas, vivemos há muito tempo em uma época de redundâncias e desregramentos musicais, propagados e potencializados pela tecnologia (internet, aparelhos high tech diversos etc.). Não só os sons industriais/urbanos (já bem assimilados), mas também a música, principalmente a música, nos violenta constantemente. Como você vê e situa seu trabalho musical introspectivo no inferno sonoro em que vivemos?

Tatyana Jacques: O que é o ruído? De acordo com a teoria da comunicação, o ruído é algo que perturba a recepção da mensagem. Para a teoria acústica, o ruído é constituído por ondas sonoras sem frequência constante, em oposição ao sinal emitido pelo que percebemos e consideramos notas musicais. Contudo, já desde as primeiras décadas do século XX, sons sem frequência constante, que normalmente seriam tratados como ruídos, têm sido também utilizados como matéria prima para a criação musical, tanto na música erudita - principalmente na música eletroacústica - quanto no rock, no jazz, no rap e em outros gêneros de música popular. O musicólogo francês Jacques Attali faz uma análise interessante dessa incorporação do ruído pela música. Ele aponta que seriam percebidos como notas os sons que fariam sentido em um sistema musical definido, sendo considerados ruídos os sons que nada significariam nesse sistema. A partir disso, opera um paralelo entre os sistemas musicais e seus sistemas sociais de origem, considerando que a utilização na música de sons estranhos ao sistema, ou seja, que a quebra de determinado código musical corresponderia ao desejo de quebra de códigos sociais.
Considero que a análise de Attali dá margem a uma forma muito positiva de se perceber o ruído. Noto que o cenário artístico ligado à música é marcado pela constituição de uma série de hierarquias elitistas e relações de poder que dissimulam questões econômicas e acabam por perpetuar o status de muita gente medíocre, que se legitima se filiando à academia e, principalmente, construindo relações políticas com os detentores do poder do Estado e dos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, acho super válida a emergência não de violência, mas de certa agressividade artística com a imposição de determinados gêneros e concepções musicais ligados a visões de mundo particulares e alternativas. Acho que ouvir, fazer e ter sua música ouvida é uma forma de constituir um lugar no mundo delimitado por sua visão e valores específicos. Assim, percebo esse desregramento musical como algo extremamente produtivo e positivo. Acho ótima essa diversidade de artistas e esse caos de gêneros musicais que têm se constituído nas últimas décadas. Temos acesso, todos os dias, a uma paisagem sonora muito rica, que devemos tentar apreciar sem preconceito, sem traçar fronteiras. Que bom que tantas pessoas estão tendo voz e meios pra criar e difundir sua música e também para ouvir as músicas que gostam a qualquer hora. Acho muito bom ter minha voz ecoando entre tantas outras nesse "inferno". É claro que todos nós precisamos também de momentos de silêncio. Mas é assim mesmo, é quase impossível controlar o som, às vezes somos invadidos, mas às vezes também invadimos. Todos nós. Estamos sempre tentando conquistar espaço para constituir nosso universo, e o som é uma arma eficaz.

I: Jack Endino, ex-produtor do Nirvana, polemizou ao criticar bandas brasileiras que adotam o inglês como língua – segundo ele, fora o Sepultura, ninguém foi bem sucedido. Isso não nos surpreende, nem é algo tão estranho e atual assim. Entre 1960 e 1970, diversas bandas surgiram no cenário brasileiro cantando em língua inglesa e até fingindo ser bandas gringas. O que nos impressiona mais é que diversos grupos (não só do Brasil, mas também de várias partes do mundo), mesmo cantando em suas línguas nativas, têm uma dicção própria do inglês. Por outro lado, curiosamente, sua maneira de cantar tem uma pronúncia bem formal do português. Você se ocupa com essas questões? Já sentiu necessidade de cantar em outra língua ou alguma dificuldade de compor e cantar em português?

T.J.: Acho importante ter em mente, também, quanto à opção por determinada língua, que cada língua tem uma sonoridade específica. Então, na maioria das vezes, a escolha do inglês está ligada a uma opção estética de soar de determinada forma. É claro que muitas vezes também isso pode estar relacionado a estratégias de inserção no meio e no mercado musical, mas não vejo mal nisso. Acho que, para divulgar seu trabalho e suas ideias, cada artista vai escolher estratégias a partir do que considera interessante, ético e do que o faça se sentir bem. Cantar em sua língua nativa também pode ser uma estratégia. Tenho amigos que compõem em inglês e que relatam já terem se sentido prejudicados quando concorreram a editais de incentivo a cultura e em outras situações do tipo. No caso de minhas composições, prefiro o português porque é a língua que conheço e domino melhor e na qual eu me expresso com mais fluidez. Eu gosto de como o português soa, e é a língua na qual tenho mais repertório de palavras, rimas, associações etc. Mas talvez um dia eu queira também criar músicas em outras línguas, para experimentar. Quem sabe? Acho curioso você dizer que minha pronúncia seja formal. Pode ter a ver com o fato de eu ter nascido no Rio, mas ter vindo para Florianópolis ainda criança. Então tenho um sotaque meio esquisito, particular, que talvez reverbere na forma que eu canto. Também pode ser porque na música brasileira, a música que vem aqui do sul é sempre deixada um pouco de lado. Pode ser que vocês não estejam acostumados com a cantoria aqui de baixo.

I: Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, a música ainda vive sob o domínio do pulso, do ritmo. Em vez de texturas, de planos sonoros intricados, de espacialidades complexas, de efeitos sublimes, de timbres inauditos, temos o bass, o groove, o batidão, a percussividade demoníaca, a pujança física do som. Como se o tão aguardado século XXI ainda não tivesse dito a que veio. Como você desenvolve suas músicas em seu home studio? Utiliza instrumentos virtuais?

T.J.: Já no início do século XX, constitui-se uma espécie de vanguarda com o privilégio da "vidência" que anuncia a "morte da música" e a emergência de novas tendências. Na verdade, acho esse tipo de previsão bastante normativa. Opera-se uma série de exclusões a partir da supervalorização de um ponto de vista e de uma concepção de música particular, social e historicamente situada. Isso é o que na Antropologia se chama etnocentrismo. Acho que ninguém tem como prever que desdobramentos ocorrerão na música e quais serão os futuros objetos de interesse dos compositores. Tem muita gente pensando e fazendo música. Já no início do século passado, muitos compositores desenvolveram seus trabalhos tendo entre seus principais objetivos o experimento com texturas, timbres, densidades e ambiências sonoras. Ou seja, essa tendência já dura, pelo menos, mais de cem anos, mas, às vezes, é vista como algo de extrema atualidade ou algo ainda por vir. Em minha opinião, muita coisa interessante já foi e ainda está sendo feita a partir da diretriz da experimentação com timbres e texturas, tanto na música erudita quanto na música popular. No rock, por exemplo, diversas bandas têm desenvolvido essas características, entre elas Pink Floyd, The Beatles, Sonic Youth, Mutantes, apenas para citar algumas. Também acho importante ter em vista que a pesquisa por texturas e planos sonoros não impede o trabalho com o ritmo e o pulso, o que tem sido mostrado por vários artistas da música eletrônica. Desde o início do século XX, pesquisas sobre o ritmo também têm sido objeto de atenção de vários compositores. Gêneros da música popular, de forma geral, são muito ricos nesse sentido e foram e têm sido apropriados e incorporados por vários compositores eruditos.
Na verdade, com todo esse panorama em vista, as músicas que tenho feito são bastante simples e convencionais. Utilizo nelas matérias-primas muito comuns. Trabalho com pulsação e ritmo constante – mas também com mudanças de compasso e andamento -, com harmonia tonal e com a ideia de melodia acompanhada. Isso porque percebo que, longe de estarem esgotadas, ainda emergem infinitas possibilidades de criação a partir desses materiais. Mas não deixo de buscar criar texturas, climas e ambiências.
Quando vou gravar minhas músicas, utilizo, sim, muitos instrumentos virtuais, principalmente teclados. Mas também utilizo instrumentos reais. Toco piano, violoncelo e um pouco de guitarra e violão e me aproveito disso em minhas gravações. Apesar de ter um piano de armário em casa, é mais comum optar por um piano virtual. Tenho um piano eletrônico que também é controlador
midi. Então faço o sequenciamento midi, mas como sou pianista prefiro trabalhar como se estivesse tocando um piano real; depois seleciono timbres e edito. Frequentemente, começo a trabalhar escrevendo a música em um editor de partituras. Depois transformo a partitura em arquivo midi e trabalho nos timbres. Gosto muito de misturar os timbres dos instrumentos virtuais com os instrumentos reais e também de trabalhar efeitos na voz e nos instrumentos reais. Já componho há muitos anos, mas iniciei meu trabalho de gravação apenas em 2011. Então, é algo muito recente e ainda pode amadurecer e melhorar muito. Interesso-me, principalmente, por pesquisar mais sobre sintetizadores. Atualmente, temos acesso fácil a sintetizadores virtuais bastante complexos que apresentam infinitas possibilidades de criação de timbres. Outra coisa que quero fazer é chamar músicos que toquem outros instrumentos para fazerem participações em minhas músicas. Acho que isso vai enriquecer muito meu trabalho em termos de timbres. Tenho trabalhado sozinha. Canto, toco, gravo, edito e faço a mixagem sozinha. Às vezes peço um pouco de ajuda ao Ari, meu marido, uma opinião sobre determinado arranjo ou mixagem ou auxílio para resolver alguma questão de computação. É ele também que toca guitarra na música Tudo Sobre Mim, disponibilizada em https://soundcloud.com/melosina. Tenho aprendido muito trabalhando sozinha e acho que cresci bastante como instrumentista e compositora depois que comecei a gravar minhas músicas, mas percebo ainda muita coisa em meu trabalho que deve ser aperfeiçoada. Nesse sentido, acho que as parcerias e opiniões de outros artistas são sempre muito importantes.

I.: Você se identifica com o termo indie? Carlos Reichenbach fez em 1982 um filme excepcional cujo título “Amor, Palavra Prostituta” por si só já valeria o ingresso. Palavra prostituta seria um termo usado indiscriminadamente por qualquer um, para quaisquer fins. Não estaria o termo indie se tornando uma espécie de palavra prostituta?

T.J.: Inicialmente o termo indie era utilizado para designar bandas americanas, que surgiram a partir dos anos 1980 e desenvolviam trabalhos de forma independente, ou seja, sem se associar às grandes gravadoras. Aos poucos, o termo começou a ser utilizado também para definir alguns estilos de rock próximos ao punk, ao pós-punk e ao grunge. Em alguns nichos de rock, como o metal, acabou assumindo mesmo uma conotação pejorativa. Atualmente, cada vez mais, as grandes gravadoras perdem espaço, e artistas filiados a diferentes gêneros musicais, desde rock a pagode e sertanejo, desenvolvem seus trabalhos de forma independente, buscando novos meios de divulgá-los e de obter recursos financeiros para continuar desenvolvendo-os.
Vejo que essa proliferação de artistas independentes também levou a uma explosão de gêneros e subgêneros musicais. O
rock, por exemplo, acaba subdividindo-se em metal, punk, hard core, pós-punk, rockabilly, psychobilly, entre outros, inclusive indie. Mas, de fato, há muita divergência sobre o que seja uma banda ou um músico indie. Parece não haver nenhuma característica musical constante que defina o subgênero.
De qualquer forma, acho que essas subdivisões de gêneros, que acontecem não apenas no
rock, não podem ser tomadas como características definidoras e nem limitadoras dos trabalhos dos músicos. Vejo que a maioria dos artistas trabalha nas entrelinhas dessas subdivisões, apropriando-se das características musicais com as quais se identifica. Mas no fim, esses "rótulos" acabam sendo úteis para apontar tendências e afinidades. Normalmente, quando criamos uma página para a disponibilização de músicas, somos demandados a definir nosso trabalho a partir deles. Com isso, nosso trabalho acaba sendo associado na rede ao de outros artistas que optaram pelos mesmos "rótulos". O público em geral, muitas vezes, também busca músicas usando esses "rótulos" como palavras-chave. Nesse sentido, acabo me identificando com o termo indie, pois frequentemente encontro trabalhos de artistas, com os quais tenho afinidade, que optaram pela incorporação do termo. Mas não apenas indie, também alternativo, experimental, canção ou mesmo MPB. Acho que o importante é conseguir acessar e encontrar pessoas que se interessem em conhecer e compreender a proposta. O que, normalmente, não é muito fácil.

 

 

Tatyana Jacques é compositora, pianista, violoncelista e antropóloga. Bacharel em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina e Mestre e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pesquisas nas áreas de música, rock, fonografia e som no cinema. Atualmente desenvolve o projeto Melosina, de composições próprias e gravações em seu home studio: https://soundcloud.com/melosina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Desde as primeiras décadas do século XX, sons sem frequência constante, que normalmente seriam tratados como ruídos, têm sido também utilizados como matéria prima para a criação musical, tanto na música erudita - principalmente na música eletroacústica - quanto no rock, no jazz, no rap e em outros gêneros de música popular.

Acho muito bom ter minha voz ecoando entre tantas outras nesse "inferno". É claro que todos nós precisamos também de momentos de silêncio. Mas é assim mesmo, é quase impossível controlar o som, às vezes somos invadidos, mas às vezes também invadimos. Todos nós. Estamos sempre tentando conquistar espaço para constituir nosso universo, e o som é uma arma eficaz. .

Acho que ninguém tem como prever que desdobramentos ocorrerão na música e quais serão os futuros objetos de interesse dos compositores. Tem muita gente pensando e fazendo música. Já no início do século passado, muitos compositores desenvolveram seus trabalhos tendo entre seus principais objetivos o experimento com texturas, timbres, densidades e ambiências sonoras.

 

Trabalho com pulsação e ritmo constante – mas também com mudanças de compasso e andamento -, com harmonia tonal e com a ideia de melodia acompanhada. Isso porque percebo que, longe de estarem esgotadas, ainda emergem infinitas possibilidades de criação a partir desses materiais.