Interzona: Em um filme de Rogério Sganzerla a impagável Helena Ignez nos diz que "a pior poluição é a sonora". Além da ligação, cantada pelo Futurismo, entre o ruído e as sociedades urbanas, vivemos há muito tempo em uma época de redundâncias e desregramentos musicais, propagados e potencializados pela tecnologia (internet, aparelhos high tech diversos etc.). Não só os sons industriais/urbanos (já bem assimilados), mas também a música, principalmente a música, nos violenta constantemente. Como você vê e situa seu trabalho musical introspectivo no inferno sonoro em que vivemos? Tatyana Jacques: O que é o ruído? De acordo com a teoria da comunicação, o ruído é algo que perturba a recepção da mensagem. Para a teoria acústica, o ruído é constituído por ondas sonoras sem frequência constante, em oposição ao sinal emitido pelo que percebemos e consideramos notas musicais. Contudo, já desde as primeiras décadas do século XX, sons sem frequência constante, que normalmente seriam tratados como ruídos, têm sido também utilizados como matéria prima para a criação musical, tanto na música erudita - principalmente na música eletroacústica - quanto no rock, no jazz, no rap e em outros gêneros de música popular. O musicólogo francês Jacques Attali faz uma análise interessante dessa incorporação do ruído pela música. Ele aponta que seriam percebidos como notas os sons que fariam sentido em um sistema musical definido, sendo considerados ruídos os sons que nada significariam nesse sistema. A partir disso, opera um paralelo entre os sistemas musicais e seus sistemas sociais de origem, considerando que a utilização na música de sons estranhos ao sistema, ou seja, que a quebra de determinado código musical corresponderia ao desejo de quebra de códigos sociais. I: Jack Endino, ex-produtor do Nirvana, polemizou ao criticar bandas brasileiras que adotam o inglês como língua – segundo ele, fora o Sepultura, ninguém foi bem sucedido. Isso não nos surpreende, nem é algo tão estranho e atual assim. Entre 1960 e 1970, diversas bandas surgiram no cenário brasileiro cantando em língua inglesa e até fingindo ser bandas gringas. O que nos impressiona mais é que diversos grupos (não só do Brasil, mas também de várias partes do mundo), mesmo cantando em suas línguas nativas, têm uma dicção própria do inglês. Por outro lado, curiosamente, sua maneira de cantar tem uma pronúncia bem formal do português. Você se ocupa com essas questões? Já sentiu necessidade de cantar em outra língua ou alguma dificuldade de compor e cantar em português? T.J.: Acho importante ter em mente, também, quanto à opção por determinada língua, que cada língua tem uma sonoridade específica. Então, na maioria das vezes, a escolha do inglês está ligada a uma opção estética de soar de determinada forma. É claro que muitas vezes também isso pode estar relacionado a estratégias de inserção no meio e no mercado musical, mas não vejo mal nisso. Acho que, para divulgar seu trabalho e suas ideias, cada artista vai escolher estratégias a partir do que considera interessante, ético e do que o faça se sentir bem. Cantar em sua língua nativa também pode ser uma estratégia. Tenho amigos que compõem em inglês e que relatam já terem se sentido prejudicados quando concorreram a editais de incentivo a cultura e em outras situações do tipo. No caso de minhas composições, prefiro o português porque é a língua que conheço e domino melhor e na qual eu me expresso com mais fluidez. Eu gosto de como o português soa, e é a língua na qual tenho mais repertório de palavras, rimas, associações etc. Mas talvez um dia eu queira também criar músicas em outras línguas, para experimentar. Quem sabe? Acho curioso você dizer que minha pronúncia seja formal. Pode ter a ver com o fato de eu ter nascido no Rio, mas ter vindo para Florianópolis ainda criança. Então tenho um sotaque meio esquisito, particular, que talvez reverbere na forma que eu canto. Também pode ser porque na música brasileira, a música que vem aqui do sul é sempre deixada um pouco de lado. Pode ser que vocês não estejam acostumados com a cantoria aqui de baixo. I: Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, a música ainda vive sob o domínio do pulso, do ritmo. Em vez de texturas, de planos sonoros intricados, de espacialidades complexas, de efeitos sublimes, de timbres inauditos, temos o bass, o groove, o batidão, a percussividade demoníaca, a pujança física do som. Como se o tão aguardado século XXI ainda não tivesse dito a que veio. Como você desenvolve suas músicas em seu home studio? Utiliza instrumentos virtuais? T.J.: Já no início do século XX, constitui-se uma espécie de vanguarda com o privilégio da "vidência" que anuncia a "morte da música" e a emergência de novas tendências. Na verdade, acho esse tipo de previsão bastante normativa. Opera-se uma série de exclusões a partir da supervalorização de um ponto de vista e de uma concepção de música particular, social e historicamente situada. Isso é o que na Antropologia se chama etnocentrismo. Acho que ninguém tem como prever que desdobramentos ocorrerão na música e quais serão os futuros objetos de interesse dos compositores. Tem muita gente pensando e fazendo música. Já no início do século passado, muitos compositores desenvolveram seus trabalhos tendo entre seus principais objetivos o experimento com texturas, timbres, densidades e ambiências sonoras. Ou seja, essa tendência já dura, pelo menos, mais de cem anos, mas, às vezes, é vista como algo de extrema atualidade ou algo ainda por vir. Em minha opinião, muita coisa interessante já foi e ainda está sendo feita a partir da diretriz da experimentação com timbres e texturas, tanto na música erudita quanto na música popular. No rock, por exemplo, diversas bandas têm desenvolvido essas características, entre elas Pink Floyd, The Beatles, Sonic Youth, Mutantes, apenas para citar algumas. Também acho importante ter em vista que a pesquisa por texturas e planos sonoros não impede o trabalho com o ritmo e o pulso, o que tem sido mostrado por vários artistas da música eletrônica. Desde o início do século XX, pesquisas sobre o ritmo também têm sido objeto de atenção de vários compositores. Gêneros da música popular, de forma geral, são muito ricos nesse sentido e foram e têm sido apropriados e incorporados por vários compositores eruditos. I.: Você se identifica com o termo indie? Carlos Reichenbach fez em 1982 um filme excepcional cujo título “Amor, Palavra Prostituta” por si só já valeria o ingresso. Palavra prostituta seria um termo usado indiscriminadamente por qualquer um, para quaisquer fins. Não estaria o termo indie se tornando uma espécie de palavra prostituta? T.J.: Inicialmente o termo indie era utilizado para designar bandas americanas, que surgiram a partir dos anos 1980 e desenvolviam trabalhos de forma independente, ou seja, sem se associar às grandes gravadoras. Aos poucos, o termo começou a ser utilizado também para definir alguns estilos de rock próximos ao punk, ao pós-punk e ao grunge. Em alguns nichos de rock, como o metal, acabou assumindo mesmo uma conotação pejorativa. Atualmente, cada vez mais, as grandes gravadoras perdem espaço, e artistas filiados a diferentes gêneros musicais, desde rock a pagode e sertanejo, desenvolvem seus trabalhos de forma independente, buscando novos meios de divulgá-los e de obter recursos financeiros para continuar desenvolvendo-os.
Tatyana Jacques é compositora, pianista, violoncelista e antropóloga. Bacharel em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina e Mestre e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pesquisas nas áreas de música, rock, fonografia e som no cinema. Atualmente desenvolve o projeto Melosina, de composições próprias e gravações em seu home studio: https://soundcloud.com/melosina.
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