aos olhos de todos, tanto melhor. Conclamemos a devassa, glorifiquemos a ruína, o denuncismo suicida,
“- Atenção! - uma voz começou a chamar, e foi como se alguém tocasse inesperadamente um oboé.
- Atenção! - repetiu no mesmo tom nasal e monótono.
- Atenção!
- Atenção! - insistia a voz, no mesmo tom.
- Atenção! Atenção! - insistia a voz de modo estranho e sem sentido.
- Atenção!”
O fardo dos milênios sobrecarrega nossos ombros. As tradições exalam sua podridão secular. As religiões monoteístas desabam sobre seus fundamentos ocos. De forma bastante dramática e enigmática, o catolicismo embalsama-se a si próprio ao som dos gemidos de criancinhas angelicais e se recolhe no museu mausoléu do remorso. O fascismo escancara os caninos para o ocidente; o capitalismo do fervor religioso, louco e deficitário ancora-se sobre os trabalhadores mulas, receptáculos de todo ônus do processo. A mais-valia de um império é o extermínio de centenas de milhões de homens e hectares. Adeus democracia! A celebrada e aclamada res publica é a mais vilipendiada e mitigada das mentiras que se recusam a cair. A política abnegada e desinteressada do povo começa, sob a narina de todos, a feder.
“- Atenção!”
Demonstramos que podemos muito. Que podemos suportar o mundo. Carregamos de bom grado todas as suas mazelas, toda a sua imundície. E nos pedem, encarecidamente, que suportemos mais. Pelo bem de todos... Que suportemos mais. Tenhamos compaixão, paciência, indiferença. Riem e dizem: vocês suportam mais! Vocês ainda não suportaram o bastante! Mas quem ri? Nós! Nós todos rimos e pedimos que a carga aumente. A estupidez é a coisa mais bem partilhada do mundo.
“- Atenção!”
O bom senso exige que nos adaptemos. Nossos pais e países exigem que nos adaptemos. A Igreja, a publicidade, os vizinhos, os intelectuais silenciados, as tradições, as instâncias sagradas pedem que nos adaptemos. A troco de quê? A quem interessa tudo isso? Talvez a ninguém, de fato, mas apenas de direito. Talvez só estejamos, na verdade, mal habituados, atolados numa engrenagem insana, mortífera e absurda. Questão de lei, questão de ordem!
“- Atenção!”
Que escancarem a miséria dos governantes aos olhos de todos, tanto melhor. Conclamemos a devassa, glorifiquemos a ruína, o denuncismo suicida, a profusa delação das mazelas públicas e políticas. Não torcer pelo pior, mas pelo estupro que só a realidade pode ocasionar em nossas mentes absortas. E agora vamos às ruas, aos becos e vielas da alquebrada história das civilizações clamar pelo advento de um salvador.
“- Atenção!”
Querem que suportemos mais. Que o céu caia, então, como um rochedo sobre nossas cabeças.
“- Atenção!”
“Senhor cidadão, com quantos quilos de medo se faz uma tradição? Senhor cidadão, com quantas mortes no peito se faz a seriedade?”
“- Atenção!”
“O que diz a meia-noite em seu bordão?”.
Eu dormia, dormia...
Fui acordado de um sono profundo!
Profundo é o mundo!
E mais profundo do que pensa o dia.
Profundo é o sofrimento –
E o prazer – mais profundo que a ansiedade.
A dor diz: ‘Passa momento!’
Mas todo prazer quer eternidade – “
“- Atenção!”
Ideias e aldeias não bastam.
“- Atenção! Atenção!”
O mérito da luta em tempos inglórios é a própria luta.
“É preciso estar atento e forte.”
“- Atenção!”
“Eu sei que você pode mais.”
“A coragem quer rir.”
A coragem exige novos modos de expressão.
Textos citados, respectivamente: Aldous Huxley; Tom Zé; Nietzsche; Gilberto Gil e Caetano Veloso; Raul Seixas; Nietzsche.