Ricardo Rodrigues, X Filme Noir, 2017

 

O dilema entre a liberdade e a necessidade em David Hume e Edgar Allan Poe

 

 

 

Nesse conto, além de apresentar um delicioso

e irreverente enredo policial, Poe demonstra que é possível,

por meio de cálculos rápidos e precisos,

descobrir o que se passa na mente de alguém

e prever seus gestos.

 

 

 

Quase cem anos após David Hume publicar Uma investigação sobre o entendimento humano (1748), Edgar Allan Poe lança o conto Assassinatos na rua Morgue (1841). Nesta célebre história policial, Poe descreve a rotina de dois amigos que possuem hábitos exóticos como reclusão total num velho casarão durante o dia, longos passeios noturnos e complexos jogos intelectuais. A história é narrada em primeira pessoa por um americano que está de passagem por Paris e que encontra, por acaso, um homem chamado C. Auguste Dupin cuja capacidade analítica, extremamente aguçada, lhe permite “ler” pensamentos. Tal habilidade faz com que eles investiguem e desvendem o misterioso assassinato de duas mulheres na rua Morgue.

 

Nesse conto, além de apresentar um delicioso e irreverente enredo policial, Poe demonstra que é possível, por meio de cálculos rápidos e precisos, descobrir o que se passa na mente de alguém e prever seus gestos. Mas isso não é, pelo menos filosoficamente, o mais interessante nesta história. Algo mais escandaloso que a invasão de nossa privacidade mental e a antecipação do futuro subjaz aí. No fundo, é o conceito de liberdade que é questionado e refutado por Dupin.

 

Em Uma investigação sobre o entendimento humano, o filósofo inglês David Hume analisa um dos problemas mais complexos e discutidos da filosofia: o da antinomia entre os conceitos de liberdade e necessidade. Uma vez que aceitemos a possibilidade ou capacidade de “ler” pensamentos e prever situações, acabamos por admitir, também, que nos encontramos numa rede ou conexão de acontecimentos que nos motiva e nos revela. A liberdade, num sentido amplo ou absoluto, requer uma independência total de tudo e de todos. Admitir tal conceito seria o mesmo que afirmar a tese da geração espontânea ou acreditar na existência do pensamento mágico, segundo os quais corpos ou fenômenos poderia surgir gratuitamente do nada ou do acaso. Como nos diz Hume, embora discutamos e tratemos muito da liberdade, é o conceito de necessidade ou de determinismo que é levado em conta em nossas ações cotidianas. Do ponto de vista prático, seguimos e confiamos, a todo instante, no princípio da causalidade.

 

Para Hume, toda a matéria, dos corpos inanimados aos seres animados e inteligentes, é submetida à causalidade; tanto uma pedra que rola como um homem que anda seguem o princípio da causalidade ou da motivação. Hume nos diz:

 

“É universalmente admitido que a matéria, em todas as suas operações, sofre a atuação de uma força necessária, e que todo efeito natural está tão precisamente determinado pela energia de sua causa que nenhum outro efeito, naquelas circunstâncias particulares, poderia ter resultado dela.”

 

Ele reconhece ainda que há “uma uniformidade nos motivos e ações humanas de forma tão pronta e universal quanto nas operações dos corpos”.

 

Para Poe, estar submetido ao princípio da causalidade faz com que as pessoas possuam “janelas no peito”. Um observador pode prever sentimentos, pensamentos e acontencimentos, desde que possua a capacidade analítica aguçada e conheça os motivos que guiam o sujeito ou objeto da observação. Visto dessa forma, o adivinho é, na verdade, um analítico, um ser de inteligência ímpar que faz observações e cálculos complexos. Videntes, mágicos, estelionatários, conquistadores, jogadores, todos aqueles que se utilizam da inteligência para antecipar e influenciar situações e pessoas, têm nos olhos (ou no peito), na fisionomia e nos gestos tudo o que precisam, as janelas da alma e do futuro, para, de acordo com sinais e análises probabilísticas, descobrir não só o que se passa na vida de alguém, mas, também, o que, por conseguinte, advier daí.


 

Magritte, La decalcomanie, 1966

 

É curioso como os textos de Hume e Poe possuem ressonâncias. Hume escreve em Uma investigação sobre o entendimento humano:

 

“E parece certo que, por mais que possamos imaginar que sentimos uma liberdade dentro de nós, um espectador pode comumente inferir nossas ações a partir de nossos motivos e de nosso caráter, e, mesmo quando não o pode, conclui em geral que poderia fazê-lo se estivesse perfeitamente familiarizado com todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento, e com os móveis mais secretos de nossa natureza e disposição. Mas isto é a própria essência da necessidade, de acordo com a doutrina precedente.”

 

O narrador de Assassinatos na rua Morgue, por sua vez, diz sobre Dupin:

 

“Ele se gabava, com uma risadinha baixa e discreta, de que podia ler as intenções e pensamentos da maioria dos homens, como se tivessem janelas no peito; e tinha o costume de acompanhar estas assertivas com provas diretas e bastante assombrosas do seu conhecimento íntimo de meus sentimentos.”

 

Oscar Wilde diz que a natureza, ao contrário da humanidade, é tediosa por ser previsível. Hume e Poe, segundo os textos que citamos acima, pensam de forma diferente. Para eles não há diferença entre a natureza e o homem, ambos são previsíveis.

 

O conceito de necessidade ou de determinismo, segundo Hume, é largamente aceito e utilizado pela maioria dos homens. Toda ação que praticamos leva em conta a ideia de necessidade ou determinismo. Não levantaríamos da cama, nem praticaríamos um ato sequer, por mais trivial que fosse, sem que contássemos, automaticamente, com a ideia de causa e efeito. Não iríamos ao açougue, por exemplo, se não esperássemos encontrar carnes em suas dependências. Felizmente, ainda não chegamos à situação descrita por Raul Seixas na música “O dia em que a terra parou”.

 

A não admissão da “doutrina” da necessidade é surpreendente para o filósofo inglês. Como ele próprio afirma:

 

“Tenho frequentemente considerado qual poderia ser a razão pela qual toda a humanidade, embora sempre admitindo sem hesitar a doutrina da necessidade em todos seus atos e raciocínios, revele, contudo, tanta relutância a admiti-la em palavras, e se mostre, em todas as épocas inclinada, a defender a opinião contrária.”

 

Eis aí uma verdade! E, cá entre nós, o que seriam dos enredos policiais sem o princípio de causa e efeito, ação e consequência? Uma história policial no sense, no estilo de Alice no País das Maravilhas, seria uma obra interessante, mas bem longe do naturalismo excitante de um film noir, certo?

 

Entretanto, com senso ou sem senso, o fato é que as habilidades analíticas de Dupin e de todos os detetives clássicos, como Sherlock Holmes, se tornaram um elemento dispensável na investigação de crimes. O advento da informática e dos smartphones, dos dispositivos de localização e de coleta de dados pessoais permitiram aos detetives acessar facilmente as “janelas no peito” de qualquer pessoa, desde que ela use a internet e carregue um celular no bolso.

 

Para finalizar, transcrevemos, abaixo, um trecho de Assassinatos na rua Morgue, de Edgar Allan Poe. Num mundo onde escutas telefônicas, invasões de e-mails e delações premiadas transformaram os enredos policiais em fenômenos extremamente banais e odiosos, ler um romance investigativo, à moda antiga, pode constituir um estrondoso e imprevisível prazer. (O livro completo em PDF pode ser acessado aqui. Para ler trechos da obra de David Hume em português (e de muitos outros filósofos) sugiro a Antologia de Textos Filosóficos,organizada por Jairo Marçal, e disponibilizada pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná)

 

***

Assassinatos na rua Morgue 

 

As características mentais geralmente denominadas analíticas são, em si mesmas, pouco suscetíveis a uma análise. Podemos apreciá-las somente através de seus efeitos. Sabemos delas, entre outras coisas, que quando possuídas em grau incomum, sempre são, para seu possuidor, uma fonte do mais vivo prazer. Assim como o homem robusto vibra em sua força e habilidade física, dedicando-se com entusiasmo aos exercícios que põem seus músculos em ação, assim o analista se glorifica naquela atividade moral que desembaraça e deslinda. Encontra prazer até mesmo nas ocupações mais triviais que lhe permitam exercer seus talentos. Ama os enigmas, os paradoxos e os hieróglifos; exibe, na solução de cada mistério, um grau de acurácia que parece sobrenatural às pessoas de compreensão mais ordinária. Seus resultados, ainda que obtidos através da própria alma e essência do método, apresentam, de fato, todo o aspecto da intuição.

 

(…)

 

Uma noite, estávamos passeando por uma rua comprida e suja, nas proximidades do Palais Royal. Estando ambos, aparentemente, imersos em pensamentos, nenhum de nós tinha proferido uma sílaba por, no mínimo, quinze minutos. Repentinamente, Dupin proferiu estas palavras: – Ele é um camarada muito baixinho, é verdade: serviria bem melhor para o Théâtre des Variétés. – Não resta dúvida – respondi distraidamente, sem observar a princípio (por encontrar-me profundamente absorvido em reflexões) a maneira extraordinária com que meu interlocutor tinha entrado justamente no espírito de minha meditação. No instante seguinte, percebi o que havia acontecido e meu espanto foi profundo. – Dupin – disse eu, gravemente –, isto vai além de minha compreensão. Não hesito em dizer que estou assombrado e dificilmente posso acreditar na evidência de meus sentidos. Como foi possível que você soubesse que eu estava pensando em…? – fiz uma pausa neste ponto, como para me convencer além de toda dúvida de que ele realmente sabia em quem eu estivera pensando. – Em Chantilly, naturalmente – disse ele. – Por que fez uma pausa? Você estava observando para si próprio que sua figura diminuta não era adequada para papéis trágicos. Fora precisamente este o assunto de minhas reflexões. Chantilly tinha sido, quondam, um sapateiro remendão da rua St.-Denis que havia pego a febre do palco e fora tentado a representar o papel de Xerxes, na tragédia de mesmo nome, de Crébillon, tendo sido notoriamente satirizado por seus esforços através de panfletos anônimos. – Explique-me, por amor de Deus – exclamei –, o método, se é que houve um método, por meio do qual você foi capaz de ler meus pensamentos dessa forma. De fato, eu estava muito mais impressionado do que me dispunha a admitir. – Foi o vendedor de frutas – replicou meu amigo – que o levou à conclusão de que o sapateiro-remendão não tinha altura suficiente para o papel de Xerxes et id genus omne. – O vendedor de frutas! Agora mesmo não entendi nada! Não conheço nenhum fruteiro! – O homem que veio correndo em sua direção quando entramos nesta rua, deve ter sido há uns quinze minutos. Lembrei-me então que, de fato, um vendedor de frutas, carregando na cabeça um grande cesto cheio de maçãs, quase tinha me derrubado por acidente, quando dobramos da rua C—— para a avenida em que estávamos agora; mas não havia a menor possibilidade de associar esse fato a meus pensamentos sobre Chantilly. Mas Dupin não era absolutamente dado a charlatânerie. – Eu vou explicar – disse ele. – Para que você possa compreender mais claramente, vamos primeiro retraçar o curso de suas meditações, desde o momento em que eu lhe falei até nosso rencontre com o quitandeiro que acabei de mencionar. Os elos maiores da cadeia são os seguintes; Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, Estereotomia, os paralelepípedos da rua e o vendedor de frutas. Há poucas pessoas que não tenham, em determinado período de suas vidas, se divertido a tentar retraçar as etapas através das quais conclusões particulares de suas próprias mentes possam ter sido atingidas. Essa ocupação muitas vezes é cheia de interesse; e aquele que tenta realizá-la pela primeira vez pode ficar assombrado pela distância aparentemente ilimitada e incoerente entre o ponto de partida e o objetivo alcançado. Imagine-se então meu pasmo, minha estupefação ao escutar o francês emitir aquelas sentenças que recém havia pronunciado, especialmente depois que não pude deixar de reconhecer que havia falado a verdade, ponto por ponto. Ele continuou: – Estávamos falando sobre cavalos, se me lembro corretamente, um instante antes de dobrarmos a esquina da rua C——. Foi este o último assunto que discutimos. No momento em que entramos nesta rua, um quitandeiro, com um cesto grande na cabeça, passando rapidamente por nós, empurrou-o sobre uma pilha de paralelepípedos colocada junto ao ponto em que o pavimento está sendo consertado. Você pisou em uma das pedras soltas, escorregou, distendeu levemente o tornozelo, ficou incomodado e de mau humor por alguns instantes, resmungou umas poucas palavras, voltou-se para olhar a pilha e então prosseguiu em completo silêncio. Eu não estava prestando atenção particular ao que você fazia, porém a observação vem se tornando para mim, nos últimos anos, uma espécie de necessidade, como se fosse uma segunda natureza. Bem, você continuou com os olhos fincados no chão – olhando, com uma expressão aborrecida, para os buracos e valas do pavimento (foi assim que eu percebi que ainda estava pensando nas pedras), até que chegamos àquela viela chamada Lamartine, que foi pavimentada, como uma experiência, com aqueles blocos que se superpõem e são rebitados uns aos outros. Aqui seu rosto se iluminou; e percebendo um certo movimento em seus lábios, não pude duvidar de que tenha pronunciado a palavra “estereotomia”, um termo que estão aplicando muito afetadamente a essa espécie de pavimento. Nesse mesmo momento, eu soube que você não poderia ter dito a si próprio “estereotomia”, sem ser levado a pensar na “atomia” e assim nas teorias de Epicuro; e uma vez que, ao discutirmos este assunto há relativamente pouco tempo, eu lhe mencionei que de forma singular, embora não estivesse despertando muita atenção, as adivinhações vagas daquele nobre grego estavam sendo agora confirmadas pela recente cosmogonia nebular, proposta pelo dr. Nichols, senti que você não poderia evitar de erguer os olhos para a grande nebulosa de Órion, e fiquei esperando que você fizesse isso. De fato, você olhou; e agora eu tinha plena certeza de que tinha seguido corretamente seus passos. Porém, naquela amarga crítica feita a Chantilly, que apareceu no Musée de ontem, o satirista fez algumas alusões desgraciosas à mudança de nome do sapateiro, depois que colocou os coturnos de um ator de tragédias e citou um verso em latim sobre o qual conversamos com frequência. Refiro-me à linha: Perdidit antiquum litera prima sonum. Eu já lhe havia dito que esta citação referia-se a Órion, porque antigamente era escrito Úrion; devido à questão que debatemos em torno desta explicação, tinha certeza de que você não teria podido esquecê-la. Estava claro, portanto, que você não poderia deixar de combinar as ideias de Órion e Chantilly. Que você realmente as combinou, eu percebi pelo sorriso que passou por seus lábios. Você estava pensando na imolação do pobre sapateiro. Até aquele momento, você estava andando meio cabisbaixo; mas, nesse momento, esticou-se de modo a mostrar sua plena estatura. Tive então certeza de que estava refletindo sobre a figura minúscula de Chantilly. Foi nesse ponto que interrompi suas meditações para observar que, de fato, ele era um sujeito muito pequeno, quero dizer, Chantilly – e que ele teria muito mais sucesso no Théâtre des Variétés.

 

Edgar Allan Poe, Assassinatos na rua Morgue, Porto Alegre: LP&M, 2002

 

 

São Paulo, 27 de março de 2017