Charles Bukowski

 

 

O Trabalho e os Dias – Uma exortação

 

 

 

Adquirir a miséria mesmo que seja em abundância
é fácil; plana é a rota e perto ela reside
mas diante da excelência, suor puseram os deuses
imortais, longa e íngreme  é a via até ela

 

Hesíodo

 

 

O mesmo problema parece se repetir: o querer fazer que não se concilia com o trabalho; o esporro que prescinde das preliminares. Escrever é mais que ter boas histórias, que arquitetar belas imagens. Escrever exige mais que talento e predisposição, exige mais que boa vontade. Histórias pessoais, folclóricas, verídicas ou não podem ser fascinantes, mas escrever é outra coisa. É necessário mais trabalho. Com certeza não basta narrar os dias, é preciso torná-los literatura. Questão da escrita: como alcançar uma brecha, um caminho que nos permita escrever? Como traçar uma linha e continuar a traçá-la incessantemente com fôlego e entusiasmo? Muitas vezes dispomos de conteúdo, coisas que extraímos de nossas vidas, da vida dos outros, dos livros, da TV - a princípio toda vida daria um livro. Mas isso não é suficiente. O trajeto é mais longo, estranho e tortuoso do que se imagina. Não venho aqui, porém, elogiar a bela forma. O formalismo é a tara dos abnegados. É preciso se desfazer das falsas ideias que rondam os processos criativos. Conteúdo ou forma, vivência ou erudição? Nem um nem outro prioritariamente. A arte não comporta dualismos estéreis. A matéria da escrita, da arte é antes o indeterminado. Podemos, obviamente, praticar, ler, ouvir um expert, nos lançar em viagens loucas, sentar sob o luar e aguardar a inspiração, nos trancafiar em quartos abarrotados de livros, estudar filosofia, teoria literária, bioquímica, usar todas as drogas e realizar todas as posições do Kama Sutra, mas nada disso, por si só, fará de nós grande coisa. A falibilidade na prática artística é a regra. Nada mais tolo, portanto, que almejar a receita. Aquele que deseja um método; aquele que programa uma rotina de escritor só pode escrever ninharias. Não existe prática segura - o premeditado golpeia a arte pelas costas. Isto porque escrever é antes uma questão de estilo. E estilo não é o mesmo que dar uma determinada forma a um conteúdo qualquer; nem repetir experiências ou receitas bem-sucedidas. Um estilo de escrita é indissociável de um estilo de vida. Reconhece-se um formalista pela dissociação tosca entre vida e obra. Mas aquele que desenvolve um estilo de escrita jamais pode se desvencilhar dele, sem antes mudar o seu próprio estilo de vida. Tente dissociar a escrita e a vida de Jack Kerouac; a escrita e a vida de William Burroughs, ou a de Charles Bukowski; ou ainda a de F. Scott Fitzgerald; e mesmo a de Franz Kafka. Exclua de um escritor o seu modo de vida e liquidaremos com a sua obra. Esqueçam-se, pois, da imagem do gênio louco isolando em uma torre de marfim. O escritor está lá fora; imerso no mundo. Uma escrita ruim denuncia não só um mau escritor, mas também um mau vivente. A escrita é um processo de experimentação e afirmação. Mas o que se experimenta ou se afirma senão a própria vida? Os escritores trazem consigo indissociavelmente uma escrita e uma vida abundante, intensa. O trabalho pode ser árduo, e o processo, patológico, mas se escreve justamente para se livrar das patologias, para erigir uma nova e grandiosa saúde que só a arte pode dar. A pergunta de Rilke ao jovem poeta ressoa ainda em nossos ouvidos, ela é a prova de fogo, por excelência: você seria capaz de viver sem a poesia, ou seja, de viver sem a arte? Um artista jamais se pergunta seriamente se o seu ofício é necessário ou não. Se isto ocorre é sinal de que algo vai mal. Não é questão de romantismo. Estabelece-se uma relação tão intensa, profundamente necessária, entre o artista e o seu trabalho - relação de dependência, de exigência e de inadiabilidade -, que soa absurda, pueril e impertinente tal pergunta.

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Conquistar um estilo, no entanto, não é uma coisa simples. Um estilo não é algo que se escolha comodamente em uma vitrine. O problema e o fascínio do estilo é justamente que ele não é um achado, mas sim e antes de tudo uma criação. A gênese do estilo é enigmática e complexa; na maioria das vezes, ele surge à revelia dos próprios autores. É mais fácil vislumbrarmos um estilo nos outros do que em nós mesmos. É preciso trabalhar, isto é, experimentar. Só se experimenta vivenciando. Copiar, decorar esquemas, se programar são apenas recursos. Com trabalho não quero dizer outra coisa que empenho, persistência, perseverança, não esmorecimento. O trabalho de um artista é muitas vezes mais efetivo, integral e contínuo do que o de um operário qualquer. Um artista não tem horários, períodos, férias nem descanso. A qualquer momento ele pode ser tomado por uma ideia. E tudo pode ser instrumento de criação e cada momento é importante para criar.


Trabalho pode não ser um bom termo, pois ele possui, além de um caráter pejorativo dado pela sociedade industrial e tecnocrata, conotações morais. No entanto, nada menos verdadeiro que a imagem de inatividade e inutilidade dada ao artista. Seria desnecessário enumerar aqui quantos homens a arte levou ao esgotamento das forças, do organismo e da sanidade. O problema é que se confunde, com certa frequência, o criador com um mero e dominical aspirante ou pretendente. É preciso convir: arte não é hobby.


Allen Ginsberg no extraordinário poema Transcrição de música de órgão descreve com maestria e extrema beleza o ato de criação. Algo semelhante ocorre no Gênesis. É surpreendente perceber que o que move o Demiurgo em seu trabalho não é um desígnio implacável, mas, tão e simplesmente, a bonança. Tudo se passa como se cada ato criador fosse sucedido pela frase: "E viu Deus que era bom". Um artista não é exatamente um predestinado, ele é antes de tudo impulsionado pela bonança. A arte pode até ser um dom, mas é um dom adquirido. Quando a percebemos no que fazemos nos alegramos e o estímulo aumenta. A luz da criação irradia em nossa face. É um processo de experimentação, alquimia. Allen Ginsberg viu sim a presença do criador e a viu em sua própria escrita.

 

"você também deve procurar o sol..."

 

Bukowski nos deu a pista: a arte é "uma maneira nova de fazer alguma tolice ou algo perigoso", "fazer alguma coisa perigosa com estilo".

 

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2006