Nu com tubarão e paisagem. 130cm97cm. Ost. Taigo Meireles. 2012.
Interzona: Como você vê a cena das artes plásticas brasileiras, num momento em que alguns dos maiores expoentes, ao menos do ponto de vista da mídia e do mercado de arte, são Vik Muniz – com sua puerilidade plástica, espécie de Mister M que desfaz o jogo de cena pictórico e impressiona multidões – e o grafismo pop decorativo de Beatriz Milhazes e Romero Britto – que não assusta ninguém?
Taigo Meireles: Esse é apenas o nicho mais pop do cenário das artes. Esses artistas definitivamente não representam o que há de melhor no Brasil, tampouco a diversidade de nossa produção. Existem vários outros nichos e cenas onde a institucionalização comanda. Temos a fraquíssima produção que se dá vinculada às universidades e que são financiadas por projetos estatais. Temos ainda os centros culturais, financiados pelos bancos e empresas de grande porte. Essas iniciativas privadas tem maior destaque por causa da publicidade e dos seus pretensos programas educativos. No fim das contas tem como principal interesse promover o nome da empresa. Nisso acabam por censurar qualquer produção artística que não se alinhe à moral e aos bons costumes de uma classe média pouco instruída. No cenário das artes, esses centros culturais ocupam o lugar que foi o da igreja. Por fim temos o rarefeito comércio de arte que ainda é pouco profissional e começa a engatinhar com o recente fenômeno das grandes feiras de arte no Brasil. Se você não quiser ser um funcionário público e um pintor de fim de semana, necessariamente estará submetido a essas instituições.
Interzona: A cena de artes plástica brasiliense pode se gabar de possuir um estilo, de compor uma cena, alguma particularidade? Morar em Brasília limita de algum modo a apreciação e a disseminação de seu trabalho?
Taigo Meireles: Brasília é como um “Velho Oeste”. Não existe uma cultura de consumo de arte, esse público está sendo formado pouco a pouco. A elite brasiliense – as pessoas com recursos para consumir uma produção de arte séria – talvez tenha outras prioridades. Digo consumir no sentido da fruição estética também. Temos um pequeno grupo de colecionadores que acompanha a produção local, a maioria ainda viaja para comprar em galerias do Rio e São Paulo. Vejo uma mentalidade um tanto provinciana nisso, mas isso é o que Brasília é: provinciana. Para você ter uma ideia, as galerias mais antigas de Brasília ficam dentro de shoppings e se mantem vendendo obras decorativas para arquitetos. Mas aos poucos isso tem mudado graças ao trabalho pioneiro que o marchand Marcelo Henrique Lima, dono da Pé Palito Galeria, vem fazendo. Assumindo uma relação profissional com os artistas, dando suporte e promovendo a obra.
Lobo e plantas. 200cmx175. OST. T.Meireles. 2011
Interzona: Você começou a estudar e praticar o desenho muito cedo e já era uma promessa antes de ingressar na universidade. Como foi sua relação com a academia, até que ponto ela ampliou e/ou limitou o seu campo de atuação?
Taigo Meireles: Realmente comecei muito cedo. Em 2002, quando ingressei na Unb, tinha 17 anos, mas já havia participado de várias exposições e já comercializava meu trabalho. O primeiro contato com o instituto de artes foi muito impactante, pois eu cheguei com mentalidade de pintor num lugar que não via a pintura com bons olhos. O ateliê de pintura estava desativado, era utilizado como Centro Acadêmico. Não havia ninguém pintando no instituto. No início, houve muito desdém e descrédito, até que outros alunos enxergaram ali uma possibilidade, uma chance de escapar da aridez das propostas puramente conceituais e da apatia dos docentes diante da produção em si e da produção dos alunos. A academia está repleta de boçais, não estou generalizando, o nível é infeccioso, e o contágio, iminente. Desconheço um artista relevante que tenha melhorado seu trabalho se vinculando à academia.
Interzona: Seus primeiros trabalhos são muitos expressivos, figurativos, o drama humano está quase sempre presente, ao mesmo tempo eles geralmente carregam conceitos, pesquisas, estudos. Como se estabelece um quadro, até que ponto vai o conceito e a expressividade de um modelo. É uma relação de complementaridade ou há também conflitos?
Lobo, espelho e planta. 130cmx97cm.T.Meireles.2012
Taigo Meireles: Um quadro começa com uma concepção, uma sensação. É uma estranheza que te acompanha e contamina sua percepção, conduzindo seu olhar a uma formatação estética. Em um segundo momento, eu preciso buscar uma adequação entre essa concepção ideal e a realidade pictórica. É nesse momento que o processo de pintura precisa ganhar mais autonomia para registrar a parcela não consciente daquela primeira concepção. Dessa forma, a relação é de conflito e complementariedade e se dá entre a compreensão intelectual, na relação com o motivo que se apresenta e pode ser lido, e o caos do devir pictórico, que precisa ser traduzido na superfície da tela.
Interzona: A técnica, o conceito, o estilo são elementos importantes para a concepção de uma obra. Judite Pimentel, porém, numa outra entrevista que fizemos aqui, diz que às vezes o acaso interfere de forma decisiva na pintura. Como você lida com o acaso em seu trabalho?
Taigo Meireles: No meio do processo, quando a estrutura já se estabeleceu, é preciso suspender a análise intelectual e acompanhar o ritmo do comportamento das manchas e cores em sua interação simultânea. Essa pergunta me faz lembrar um texto do século I, de Plínio o Velho. Em sua “História natural”, Plínio conta que o grande pintor da antiguidade, Protógenes, ao tentar representar a baba que escorria da boca de um cão, vive a experiência mítica do acaso na pintura: “Ansioso e aflito, uma vez que desejava que na pintura houvesse o verdadeiro, não o verossímil, apagara inúmeras vezes e mudara de pincel, de modo algum ficando satisfeito consigo mesmo. Finalmente irritado com aquela arte que se deixava perceber, atirou a esponja no ponto de seu quadro que o aborrecia. Esta acabou suavizando as cores carregadas tal qual o seu zelo o desejara; em tal pintura, foi o acaso que conseguiu criar o natural.” Acredito que esse relato diz tudo e revela a pretensão das vanguardas da pintura em se apossarem dessa questão como propriedade exclusiva.
Interzona: Há um trabalho seu – “...fio especular” - que lembra um problema da física de Einstein: um homem segura um espelho e se desloca na velocidade da luz... Podemos dizer que as ciências funcionam como musas para você?
Rembrandt e o fio especular. 140x100, OST. T.Meireles. 2010.
Taigo Meireles: Sim, mas não a ciência euclidiana. Tento apoiar minha pintura sobre quatro pilares: arte, ciência, filosofia e mística.
Interzona: O termo “Artes Plásticas” parece cair em desuso; em seu lugar, temos o termo genérico “Artes Visuais”, que pode tanto englobar performance, vídeo-arte, escultura, arte gráfica, pintura etc. Você vê essa mudança como algo natural ou como uma forma da arte contemporânea requisitar seu lugar? A arte pictórica estaria enfraquecida?
Taigo Meireles: Sim, podemos ver nisso manobras de adequação aos movimentos socioculturais, às transversalidades, às miscigenações e aos liberalismos. No caso da pintura, sempre houve um núcleo profundamente enraizado em sua própria tradição. E hoje, por conta de toda essa pluralidade conceitual e visual, tem sido possível coexistir com as outras propostas artísticas.
Interzona: Boa parte da renda que mantinha as atividades do grupo Fluxus provinha das vendas das obras de arte de seus pintores. Isso, além de um exemplo de como as artes plásticas são uma atividade rentável, demonstra a sensibilidade e a visão de alguns artistas na propagação e manutenção de certas ideias, movimentos e obras. Andy Warhol foi outro grande propagador de arte. Promoveu artistas como os Vevelt Underground, Jean-Michel Basquiat, Paul Morrissey, Nico, Gerard Malanga... Você sente necessidade de participar de movimentos, de grupos, de exercer um papel político por meio da arte ou acredita que sua obra já responde por si mesma?
Taigo Meireles: Como eu disse antes, nós estamos institucionalizados. Qualquer reação contra o sistema é rapidamente assimilada, passando de imediato a trabalhar em favor da máquina. Você precisa ser bastante articulado no mercado e no sistema das artes se não quiser continuar fazendo um trabalho precário, ingênuo e medíocre. Se uma obra vai exercer ou não um papel político, isso deveria acontecer sem que houvesse uma pretensão, pois do contrário a obra acaba caindo na vala da publicidade ou das artes aplicadas. Talvez Guernica seja um dos exemplos mais conhecidos de uma questão politica abordada pela pintura, porém essa pintura é importante não pela questão e sim pela força estética própria da pintura. Interesso-me pela essência das coisas, talvez ainda não consiga acessá-la, mas estou em busca.
Taigo Meireles mora em Brasília, é mestre em Artes Visuais e pintor nato aguerrido.
Brasília é como um “Velho Oeste”. Não existe uma cultura de consumo de arte, esse público está sendo formado pouco a pouco. A elite brasiliense – as pessoas com recursos para consumir uma produção de arte séria – talvez tenha outras prioridades.
O primeiro contato com o instituto de artes foi muito impactante, pois eu cheguei com mentalidade de pintor num lugar que não via a pintura com bons olhos. O ateliê de pintura estava desativado, era utilizado como Centro Acadêmico. Não havia ninguém pintando no instituto.
A academia está repleta de boçais, não estou generalizando, o nível é infeccioso, e o contágio, iminente. Desconheço um artista relevante que tenha melhorado seu trabalho se vinculando à academia.
Essa pergunta me faz lembrar um texto do século I, de Plínio o Velho. Em sua “História natural”, Plínio conta que o grande pintor da antiguidade, Protógenes, ao tentar representar a baba que escorria da boca de um cão, vive a experiência mítica do acaso na pintura.