Interzona: Na sua exposição "Interditos", você cerca locais não usuais, como árvores, descampados isolados etc., com aqueles cercados que são usados por prefeituras para isolar um local de obra, uma reforma ou qualquer outra intervenção urbana. Aparentemente não há preocupação com a imagem. A fotografia é só mais um suporte, o registro de algo, uma parte do processo? Você é como aqueles artistas que utilizam a fotografia para registrar uma performance ou como um artista plástico que a utiliza para divulgar suas obras? Fernando Pião: De certa forma, sim, pode-se dizer que essa série tem algo de registro de um processo, mas também posso dizer que é mais do que apenas um registro, pois minha intenção é produzir uma imagem a partir de uma intervenção ou de algo que vejo. O produto final é sempre uma fotografia ou um vídeo. Gosto muito de caminhar pelas ruas da cidade e, nesse perambular, encontro várias "intervenções prontas", as das constantes obras que fazem parte da paisagem urbana. Então, me aproprio dessas imagens, por meio do registro fotográfico ou videográfico. Quando viajo para o sertão, levo um tipo de tela que é usada pela construção civil e faço uma intervenção no meio da mata; nesse caso, a fotografia é também registro dessa ação. Assim, essa série “interditos” revela também que desejo cada vez mais fazer intervenções. Embora faça uso principalmente da fotografia, desejo produzir mais do que apenas uma imagem, quero algo tridimensional, algo que ocorra no espaço e implique certa duração, como uma instalação. Carrego comigo essas duas paisagens, o sertão e o urbano. A cerca, o cercamento, que remete ao predomínio da propriedade privada sobre a vida, que codifica as relações sociais em todo o interior brasileiro e mais especificamente no sertão nordestino. A tela na cidade está relacionada às contenções de fluxos, ao controle dos fluxos. Esse série ainda está em processo, há muito a ser feito sobre esse assunto, a interligar e a distinguir estes dois mundos: a caatinga e a metrópolis. Interzona: Na sua exposição, "A escala humana", as ampliações e as coisas fotografadas são enormes, o que está ausente é justamente a escala humana. O espaço urbano está deixando, cada vez mais, de ser pensado para o homem? Fernando Pião: A paisagem urbana contemporânea tem uma escala inumana. As grandes cidades trazem essa desproporção, pois não estão preocupadas com o humano, mas sim com o fluxo de grande contingente de pessoas, de coisas, de capital. O espaço urbano tornou-se uma questão de fluxo, de grande fluxo, e é uma escala não humana, um problema que vai também refletir na dimensão das imagens, nas questões que a arte tem que acentuar. Você tem que gritar para ser ouvido e também sussurrar para produzir um desvio na paisagem. Isso tudo é discutido pela exposição, com minhas grandes paisagens impessoais e as grandes imagens de miniaturas produzidas por Denise Adams, que conduzem a um intimismo, a uma relação consigo mesmo nesse mundo contemporâneo. Essa questão da escala é algo que chama muito minha atenção, pois São Paulo, como todas as grandes cidades, parece inesgotável, é um Leviatã, nós nunca damos conta dela. Talvez por isso mesmo, procuro dar ênfase ao espaço urbano sempre em reconstrução, pretendo captar esse "entre" de uma cidade que está sendo posta abaixo e de outra que está sendo levantada. Por isso os grandes formatos, a falta de referência, que torna indistinguível o espaço, os vazios que perpassam esse "cheio", esse caos. Nos trabalhos dessa exposição, algumas questões que permeiam toda minha produção aparecem: espaço, tempo e escala. No trabalho "Atrás da porta – topografia dos espaços inacessíveis" tento chamar atenção para esses espaços que são invisíveis, inacessíveis, que estão escondidos, embaixo do tapete, em escala menor. Já a série "Variações de um mesmo tema" se constitui de fotos de espaços com construções, estruturas que estão espalhadas pela cidade, precárias, provisórias, ou que estão sendo destruídas para dar lugar a outra coisa. Algumas têm um apelo de monumento, outras de uma estética de deterioração. O que lhes é comum é o fato de que elas estão em trânsito, estão deixando de ser uma coisa para ser outra, daí essa atemporalidade...
Interzona: No livro “A arte de escrever”, Schopenhauer diz: “Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria. O tema sobre o qual se pensa é bastante diversificado, assim como o mérito que ele concede aos livros. Toda a matéria empírica, portanto tudo o que é histórico, ou físico, todos os fatos, tomados por si mesmos ou num sentido mais amplo, estão incluídos nesse caso. A particularidade de tais livros diz respeito ao objeto, por isso um livro pode ser importante seja quem for o autor. Quanto ao que é pensado, em contrapartida, a particularidade diz respeito ao sujeito. Os objetos podem ser conhecidos e acessíveis a todos os homens, mas a forma de concebê-los, o que é pensado confere aqui o valor e diz respeito ao sujeito. Por isso, se um livro desse tipo é excelente e sem igual, o mesmo vale para seu autor. (...)” Poderíamos utilizar esse conceito na fotografia? Por exemplo, um fotojornalista seria aquele cuja atividade de produção de imagens é relevante como registro de “objetos”. O autor não é importante, qualquer fotógrafo com bom domínio técnico poderia produzir uma imagem de uma determinada coisa (pessoas, catástrofes naturais, guerras etc.). Ainda que as imagens produzidas por fotojornalistas variem em termos técnicos (uma abertura específica, uso ou não de flash, enquadramento), elas seriam documentais, registros de um objeto dado. Já o fotógrafo conceitual seria aquele que concebe um objeto de uma forma particular, singular, única; mesmo registrando o mundo, ele lutaria para imprimir suas concepções, sua estética, para imprimir uma “forma” particular – o que o caracterizaria como artista. Concorda com essa visão? Pião: Concordo em parte, pois todo criador acaba por imprimir algo de si em seu trabalho. Usando suas próprias palavras, “fotógrafo conceitual” seria aquele que usa o suporte fotográfico para desenvolver os conceitos, resolver suas questões estéticas, mas não consigo generalizar assim; acho que há fotógrafos ou artistas que têm como suporte a fotografia, que querem falar do cotidiano, trazer o singular que está no ordinário. O que para mim muda nisso tudo é o trajeto e a intenção de cada um; o trabalho artístico, por mais importante que seja, não é pensado para exercer uma função, ainda que depois possa ser incorporado pela cultura e por outros discursos. Não acredito que toda produção artística seja em si sempre uma forma singular e única, no entanto o que ela busca é uma singularidade, uma diferença ou mesmo pluralidades. Nem sempre é possível pensar a produção fotográfica a partir de uma imagem; ao contrário, essa produção resulta de um conjunto de imagens, de um agenciamento. A questão é como essa produção se articula, é preciso pensar no conjunto de uma produção e no momento em que ela se dá, daí a importância da edição. Interzona: Cartier Bresson dizia que a fotografia se apresentava para ele. Uma situação específica provocava nele uma emoção intensa, o que o fazia clicar. Ele dizia que para fotografar era preciso ter os olhos, as mãos e o coração em absoluta ressonância. Sebastião Salgado disse certa vez que essa era uma visão demasiadamente romântica. Para Salgado, um homem sempre traz um mundo, uma história, uma cultura quando se depara com uma situação que resultará numa imagem. Um fotógrafo é um contemplador ou alguém que intervém ativamente numa situação, que introduz na imagem sua história, sua cultura? Retomando o tema da pergunta anterior, será realmente que todo fotógrafo imprime sua “forma”? Pião: Cada um fala do seu lugar, do seu tempo, do seu campo social; o que posso dizer é que meu trabalho está entre o lirismo de um (Cartier-Bresson) e a sociologia do outro (Salgado), nesse “entre”, o que procuro é a fissura, entreformas, entre-escalas, entretempo... Não busco uma forma, mas sim um pensamento, uma ideia. Embora essa ideia sempre resulte numa forma, não é o mais importante. Quero, no meu trabalho, o "entre outras coisas"... Trazer a problemática do espaço-tempo. Só o tempo vai dizer se um trabalho é importante na história. Quanto ao dualismo: contempladores ou ativistas, não os vejo como uma coisa excludente, eles vão juntos, é dialógico. Trago comigo diversos tempos, desde minha infância em Brumado/BA até hoje. De qualquer forma, muitas das questões da fotografia clássica já se esgotaram. O artista já não é mais visto como um produtor de formas, ele lida com o que já está dado, ele se apropria do que já está aí para trazer à tona algo que ninguém tinha percebido, mas, principalmente, algo que interesse à sua pesquisa. Interzona: “Aqueles que escrevem sobre fotografia escrevem apenas para aqueles que escrevem sobre fotografia”, disse Helmut Newton em uma entrevista. Os textos sobre fotografia (desconsiderando os técnicos, claro) interessam aos fotógrafos? Fernando Pião: Isso é um problema em quase todas as áreas de conhecimento, falar para seus pares. Mas quando você coloca um problema real, seja na arte, na biologia, na física, na sociologia ou na filosofia, ele extrapola, se torna uma questão para todos que se interessam pelo pensamento, que buscam compreender as coisas, seu funcionamento, pois a produção e o pensamento sobre esta produção fazem parte de um campo social, são o ar do tempo, sempre apontam para outras possibilidades de vida, para saídas dos impasses que atingem toda a sociedade. De qualquer forma, quando se fala da fotografia, é importante precisar de qual fotografia se está falando ou em qual fotógrafo se está pensando. Jeff Wall e Sebastião Salgado, ambos são fotógrafos, no entanto eles têm mais diferenças do que similitudes. Às vezes me interesso mais por um texto de física do que de fotografia, porém tenho muito interesse por textos de fotógrafos e artistas, e geralmente seus textos têm uma força similar a de sua produção artística.
Interzona: Antigamente, mesmo que fossem usados diversos rolos de filme, nunca se chegava à quantidade de cliques que hoje se chega numa sessão fotográfica com câmeras digitais. A edição se tornou uma coisa extremamente trabalhosa, e o acúmulo de dados ocasionou novas questões sobre armazenamento. A falta de rigor quanto ao que fotografar seria o preço a ser pago pela abundância de recursos? Quais seriam os desafios e os riscos em relação a esses novos instrumentos (e procedimentos)? Fernando Pião: Cada época coloca seu problema. Hoje há certa ênfase na pós-produção que, às vezes, é mais importante que o ato fotográfico. Boa parte do processo se dá no computador, a edição e outras manipulações, mas a fotografia sempre implicou essa pós-produção. Então, o risco é se apaixonar pela técnica, lhe dar toda a primazia, ao invés de usá-la a favor da linguagem artística, do que se pretende expressar. Claro que há um grande fascínio pela técnica, que se dá pelo acesso fácil, o que nos leva ao perigo de uma produção pautada só por ela. Temos que usar a técnica e as tecnologias como aliadas em nossa pesquisa e não como um fim em si mesmo. Vemos muitas imagens belas, porém vazias, imagens que não trazem uma problemática, que não revelam nossas urgências – como a de produzir uma nova maneira de ver. Precisamos de imagens que tragam questões do próprio meio e que também possa nos levar além. Porém, há, sim, uma produção excessiva de imagens. Já nos anos 1980, o artista alemão Joachim Shimidt chamava atenção para a necessidade de editarmos o que já está aí, não seria mais necessário continuar produzindo imagens. No entanto, hoje temos obras que só são possíveis graças a esse excesso de imagens, são artistas que se apropriam do que já está aí ou produzem trabalhos que trazem muito mais um procedimento, um registro diário, do que “uma boa foto’’, calcada sobre a abundância de recursos. Interzona: Há atualmente uma sobrevalorização da técnica? A perfeição excessiva das imagens digitais, talvez seu excesso de realidade, seria sinal de empobrecimento da arte? “A arte é uma mentira. O papel do artista é convencer os outros da veracidade de suas mentiras”, dizia Paul Klee. A “mentira”, a “imprecisão”, o “erro” e o “defeito” não seriam o fundamento da concepção artística? Fernando Pião: A técnica está aí para todos; a diferença está na pesquisa, nas questões levantadas por cada um. A pintura passa pelo mesmo problema. Você pode ser um virtuoso num determinado instrumento musical, na pintura ou na fotografia, mas só isso não basta, é ficar refém da forma. Trata-se de uma herança platônica, essa busca insana pela forma perfeita, pelo corpo perfeito. O conhecimento da técnica é fundamental em qualquer área de conhecimento. Há sempre os radicais, os fascinados pela técnica. Na arte, mesmo que se use um procedimento científico, que implica numa repetição, procura-se a diferença; para isso é preciso sair do padrão, desviar o código da imagem, romper com esse domínio excessivo da técnica, com os clichês, com essa grande produção de clichês. E a imprecisão e o defeito, considerados isoladamente, não têm força artística. Portanto, não basta apenas ter um grande domínio da técnica ou apenas investir no erro. Daí a importância de um trabalho de pesquisa. O artista persegue algo, cada um traz uma problemática, que é tanto pessoal como coletiva, pois extrapola as individualidades, é um vetor, é sempre um problema de sua época. E também, como já disse, é um trabalho de edição. Ver os agenciamentos, ver quais imagens, ao serem colocadas juntas, podem evidenciar seu pensamento e se tornar um conjunto que tenha consistência, força. No entanto, tenho dúvidas se há mesmo uma sobrevalorização da técnica pelos fotógrafos, pois eles a utilizam em prol de seu trabalho. Vejo isso acontecer mais na indústria do entretenimento, a incorporação da técnica como mais um produto. Tudo que antes era pesquisa árdua dos fotógrafos, agora já vem embutido nos equipamentos e aplicativos. Fotografia hoje é uma indústria de entretenimento, uma das maneiras de se ter "uma boa foto" é no instagram, mas o que é o instagram?
Fernando Pião: Há lugar para todos os tipos de técnicas e aparelhos. É a necessidade colocada pela pesquisa que deve definir o uso de uma técnica ou de outra, seja ela antiga ou avançada. Mas, como já foi dito, a produção não se sustenta apenas com efeitos de manipulação, não se abre para outras questões. Ao contrário, ela se fecha sobre si mesma. Esses conflitos sempre existiram e vão continuar existindo. A fotografia traz consigo essa ambiguidade. No início, no século XIX, a imagem fotográfica precisava ser manipulada para conquistar o estatuto de arte. Mais tarde, ela teve que ser pura e direta para ser reconhecida como fotografia moderna. O que importa hoje é que vivemos vários tempos simultaneamente. A todo momento temos atualizações de tempos a fazer, avatares. É um mundo que está sempre sendo reiniciado, reinventado; isso não quer dizer evolução, mas sim mudança, quer dizer que podemos conviver com vários mundos, o que nos abre toda uma vertente de possibilidades, quer dizer que podemos viver no digital e no analógico ao mesmo tempo. Podemos conviver não só com o negativo, mas também com o daguerreótipo, o cianótipo, etc. Mas essa questão do negativo não é relevante. Não podemos é ficar refém da indústria, da moda, da "obsolescência programada". O negativo traz algumas questões que são importantes no meu trabalho, como a imprevisibilidade, a falta de controle, o não imediatismo. Preciso de tempo: tempo para fazer uma foto, tempo para levá-la a um laboratório, tempo para pensar aquelas fotos, a edição, o tamanho, o suporte... Interzona: Muitos fotógrafos manifestam certo temor quanto à banalização da fotografia. A princípio, em razão da facilidade de acesso aos equipamentos fotográficos e aos programas de edição, qualquer um pode produzir imagens de certa qualidade técnica e se considerar fotógrafo. Essa banalização é realmente um problema? Ou é uma ameaça apenas aos fotógrafos profissionais, que podem perder seus empregos? Fernando Pião: Essa banalização da fotografia é e não é um problema. Um pequeno grupo de fotógrafos que tem privilégios perde uma fatia de mercado, mas uma imensidão de fotógrafos é beneficiada. A natureza da fotografia é ser um meio de reprodução em grande escala. E isso é o ar do tempo. Em vários outros segmentos da vida atual, há esse excesso. Somos todos consumidores. Essa questão de "imagem bonita" e tecnicamente bem resolvida não é o que norteia uma pesquisa artística. Num trabalho são colocados problemas, que não implicam necessariamente a produção de um belo. Se repararmos nas publicações diárias (acho que essa nomenclatura “diária” não dá mais conta, pois as postagens são de minuto a minuto) nas redes sociais, só há “fotos lindas”. É uma produção vazia, por isso uma imagem logo é substituída por outra. São apenas experiências narcísicas, um amor em demasia por si mesmo. Não é possível encontrar aí uma problemática, que é parte essencial da produção fotógrafica.
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