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Interzona: A cena poética independente no Rio de Janeiro é de fato independente, mas será mesmo poética?
Heyk Pimenta: É poética também, mas nem sempre e não toda ela. Acredito mesmo que o trabalho do poeta é um trabalho como qualquer outro. Que exige como a profissão de sapateiro ou de arquiteto uma formação longa, cuidadosa, com muito estudo e acompanhamento. Como para se dizer poeta só é preciso ser minimamente alfabetizado e escrever coisas misteriosas ou bonitas para si mesmo, muita gente se autointitula poeta, até porque sempre há aplausos domésticos no em torno, leigos elogiam o pretenso poeta sem ter costume de ler poesia, ou simplesmente para não desapontá-lo. Esse poeta não estuda, não lê poesia, não se põe à prova, não procura gente que entenda do assunto para acompanhar seus processos, até por que esses são raros se sinceros. É um problema estrutural. É difícil qualquer cena ser poética, a não ser as pessoas que moram dentro do seio do mundo da poesia já instituído, elitista e conservador no que tange o acesso de outros aspirantes às letras. Quem está nesse seio recebe cuidados, quando quiser terá editora para publicar, terá resenha no jornal, terá amor e bolsa de doutorado.
Interzona: Se me lembro bem: Ferreira Gullar não acredita em poesia declamada. Já Allen Ginsberg elogiou e aderiu à poesia cantada por roqueiros como Bob Dylan, Jim Morrison, Tom Waits etc. Com quantos poemas se faz uma canoa? Isto é, invertendo o dito clássico: poesia é multiuso, serve pra muita coisa - política, xaveco, música, sarau, conferência, rodas de leitura, malandragem, psicanálise?
Heyk Pimenta: Poesia é multiuso porque é penduricalho. Quando algo não serve pra nada logo deixa de ter uma pra ter infinitas funções. Acredito na poesia em campo ampliado, como defende o Renato Rezende, nos seus desdobramentos nas outras artes e na sua inserção como saber noutras áreas de conhecimento. Quando o Eduardo Viveiros de Castro diz que o chocalho de um xamã é um acelerador de partículas, ele quer dizer que tal como a nossa ciência, nossa teoria, nossa produção de conhecimento, etc., os usos xamânicos são atualizadores de potencialidades virtuais humanas. E acredito nesse uso para a poesia, ela deve ser um atualizador de nossas potencialidades virtuais, e por isso, sim, acaba servindo para todas as coisas que você citou.
Interzona: O que o a Flip quer? Bacanal? Participar do projeto “Brazil, o país do futuro”? Acabar com o analfabetismo brasileiro? Vender livros? Dar à literatura seus 15 minutos de fama anuais?
Heyk Pimenta: Tirando a do analfabetismo, todas são verdadeiras. Mas antes de tudo a Flip é um jeito de muita gente ganhar dinheiro: locadores de estruturas metálicas, vendedores de souvenires de Paraty, especuladores, intelectuais, editores, produtores culturais, poetas de rua, ladrões, donos de pousadas rústicas e por aí vai. O interessante é que ela é dos poucos momentos no ano em que cultuamos nossos pensadores, por mais fuleiros que eles sejam, como era até os anos 1960, antes de toda a formação de opinião do mundo passar a ser emitida pelas celebridades. Mas o contrário também acontece. Tem um tempo, olhei a vitrine de uma livraria e todos os livros em destaque (Chico Buarque, Joaquim Ferreira dos Santos, Adriana Calcanhoto, etc.) eram de gente que tinha feito fama em outras áreas e agora queria ganhar dinheiro também com as letras. A Flip é isso, transforma os autores em celebridade e as celebridades em autores.
Interzona: Alejandro Jodorowsky escreveu: “Atrai-me o presente e no presente eu me estendo o mais longe possível no passado, e o mais longe possível no futuro. Amplio minha imaginação em todas as direções começando pelo presente. Nietzsche disse que é como uma árvore. A árvore cresce em duas direções: na terra, através das raízes, e horizontalmente, ou seja, no presente, através dos galhos. Eu me preocupo em crescer em todas as direções com minha imaginação e meu pensamento.” Questão: Jodorowsky é conhecido como um grande artista polivalente - aquele que atira para todos os lados. Você além de escrever participa de outras “artes”, como música, teatro, cinema, editoração, prostituição etc.? A verdade é a variedade ou Platão é que está com a razão quando admoesta os poetas por suas práticas promíscuas.
Heyk Pimenta: Estou com o nosso surrealista vivo. Como Jodorowsky, e como disse antes, acredito na poesia em campo ampliado e assim faço, gostaria de fazer mais. Já escrevi para teatro e quero continuar escrevendo, não me meto com cinema, acho que me falta conhecimento. Faço poesia e faço política. Meu intuito em tempo de negócio é transformar conhecimento relevante em produto de cultural, sem pasteurizar, sem atuar como os cientistas bonitões que vão à Ana Maria Braga. Sem ter herança e sabendo o dinheiro que a poesia me daria, foi essa uma das coisas que fui tentar fazer, além de trabalhar em livros, produção editorial. Reunir o pensamento que mais de me interessa e mostrá-lo às pessoas, acho uma tarefa política legal, seja, intervir na construção do conhecimento hoje. Mas também me prostituo. E o Platão, deus o tenha, mas seria melhor que nunca tivesse deixado de tê-lo.
Interzona: Há belas imagens místicas em Sopro Sopro:
“Todos os opostos se encontram num salto vaginal/Místicos e angustiados reúnem pregos/pra mascar com fumo/Duas calçadas separaram os verbos”
“Guardas e xamãs/brigam por tabaco/e seus olhos pintados/não veem o ninho de cobre onde a videira canta seu mantra”
A poesia continua, é necessariamente visionária ou os poetas há muito (desde o concretismo e João Cabral de Melo Neto ao menos) abdicaram da profecia para modelar palavras?
Heyk Pimenta: Nesse quesito, estou com os concretos e estou com o Piva, inimigos de morte. O Roberto Piva, que você conheceu, falou mil vezes: não existe boa poesia sem loucura, os cdf's podem sem o quão cientistas eles quiserem, que sem loucura não se escreve um poema que preste. E eu acredito nisso, tendo alimentar as duas frentes. O saber e o delírio, a linguagem como ferramenta e como campo e enunciações. Quando estamos com os sentidos entregues à criação os raios de poder e de saber que correm pelos céus nos veem e nos dão uma descarga, nesse momento somos profetas, criamos potência, sensibilidade e beleza com linguagem, e isso é fazer política quando passamos esses raios adiante com nossos poemas.
Interzona: “América por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?” Escreveu Allen Ginsberg em 1956 no planfletário e estonteante Uivo. O projeto “Livro à bolonhesa" é uma tentativa de quebrar com essa velha sina das casas de leitura? Ou ele vai além ao se proclamar “balada“? Será Paris mesmo uma festa?
Heyk Pimenta: As duas coisas. Balada sim, afinal é a única coisa que atrai gente, a promessa de prazer ininterrupto. Quando vou divulgar o Livro à bolonhesa por aí digo: Vá lá, tem mais vinho do que você consegue beber e servimos macarrão dentro de livros, é de graça e terrível. Com isso as pessoas se coçam, tem calafrios, ficam rindo com o quê de ousadia e iconoclastia que acontece dentro de uma biblioteca. A promessa de prazer tem a ver com isso, testar se o livro ainda pode ser um agente comunicador, formador e de prazer, ou se o livro já era, e temos que correr mesmo pros reality shows e shoppings. Todo encontro tem ação interativa, tem comida, debate, entrevista e vinho. E isso faz gente entrar novamente na biblioteca, gente que tinha esquecido dela. Os assuntos lá são o livro, mas também são os outros assuntos que nos cansam, nos obsedam, nos tiram o sono, os assuntos essenciais, as mortes pelas quais temos que passar para continuar acreditando que o mundo da pé, que vale a pena viver nesse curral filmado. O plano é continuarmos firmes, a prostituição tem seus prazeres.
Rio de Janeiro, 01 de março de 2011
***
(para ler mais visite: http://heykpimenta.blogspot.com/)
Na Voluntários passo
como eles
voluntário
prendo o familiar do umbigo
invento romances bailarino
mais que marginal
imaginário
ser a terceira margem do rio
Ao quererem-se nos Inválidos
invalidam-se e somem
e os sonhos bons
quem dera os fosse
são segundos
os primeiros
neles e no tempo
se acanham
e perduram
e perduram
e perduram
Os muros da escola atentos ao cego que voa
Nuvem bailarina no mar de eutanásia dos
tempos
A Passagem aberta
doce
de portais de amêndoa
em raios da hora nova
é nos novos arranhões
o sono solda
tempos breves
e outubro passa
como música
no ônibus
O escaravelho
.........................escaravelho que valha a casca
................................carneiro com a lã já tecida
................cigarra rompendo as costas do ruído
............................nada abate o sol que reina
..................nem aspira denso o asfalto gratuito
............................mas algum florir ainda se espera
.......................a si
....................como empilham favos os favos
....................oitavados
.....................para serem
.......................vagos
..........................sua própria metalurgia
.............................quanto é o enquanto?
.............................quanto aguarda
.......................o pássaro pulmão de lata
...........que desata a condição de guardião
..........................................................do limo?
....................água e pedra que se fazem limo
.............................escuras quão escuros são
...................................do pássaro os poros
.......................em seu marrom de brilho
Desgasto
os dias vão
se afunilando pela única janela
sem grades da tarde encarcerada
pipa metálica de calda airada reluzente
um supersônico
vermelha,
a cozinha chupa brasas do poente
suspiramos o que arde nas máquinas
garras atrasadas nos
escombros da encosta
crua
gaviões que remontam cílios garbosos no
que há de humano desses galhos secos,
nossos pés são o caminho
arredondando cacos de passado
na pele adocicada das engrenagens
de montar mares.
Soluço morno da fumaça
Todos os opostos se encontram num salto vaginal
Místicos e angustiados reúnem pregos pra mascar com fumo
Duas calçadas separaram os verbos
Enxugou-se o diário até virar parágrafo
De parágrafo foi à palavra
E com as novas notícias
a interjeição pretende virar silêncio
[a tradução inventa o sentimento]
sentir é o silêncio do esgotamento
Quatro
Milhões de velhices
Pássaros nos traços de um oco
[Caiamento dos timbres]
Som branquiço chupado
Nas horas de então
Qualquer cubículo serve
Qualquer desenho
Soluço morno da fumaça
Meia pauta
Para todos os males digestivos
No topo de uma corda hipnotizada
[Qualquer sincretismo é sincero
E real]
Daqui do auto alto
É possível ver tão longe
Que se enxerga o futuro
Tragam menos mantimento
E mais munição
Idólatras
Doentes
Maridos
Navegou-se quase três minutos
atrás de terra
[Num poema de cores
Todo contraste será castigado]
Por desconhecer o que era barco
E o que água
Inexistiram nos corpos do tempo
E cantou-se músicas de bichos
Pra aguar o silêncio
Garimpeiro de alumínio
Peregrina e pasta
encurva fuça e acha
Revira e adorna a falange
no campo aberto de prata
Garimpeiro de alumínio peneirando lata
De sorriso mal vestido
Cada lapa uma serra pelada
Cada lapa sua serra pelada
Filho do tambor colorido
e do vestígio de vidro
Adestrando um futuro ancestral
Garimpeiro de alumínio peneirando lata
Arbustando o silêncio
do jardim de quem passa
Garimpeiro transparente
vira lixo com o lixo que caça
Imerso no chorume que come
Morre de micose
Pé atolado de cidade na idade da pedra
Seu mercúrio chega a galope
O cobre das pombas
O sol não podia mais
comia a gordura rápida
do alto planeta inteiro
Uma calculadora praguejava
seus salários que não davam conta
na mesma sombra
onde passarinhos de capuz
limpam um jardim antigo
Cavadores se fantasiam
e correm tubos de uma névoa grossa
sob o chão macio
Guardas e xamãs
brigam por tabaco
e seus olhos pintados
não veem o ninho de cobre
onde a videira canta seu mantra
Pombas marcham sobre a grama
e os piolhos das penas
alimentam o terreno
eles são à prova de seus planos
e fazem desse barro branco
o palanque para seu silêncio
Escorpião chá
.............há
.............no
.............não amor
..................o escorpião chá
..................das calças curtas
..................trota largo
.......................seus gestos justos
...........e campeia nomes para si
.............cria seus pais
.....................ele é o outro
.............então não há
.
..........e por não querer ser pista
........................de seu motivo
..................andarilha mofo nas cidades
..................angaria rodas
..................e lambe fino o asfalto
....................o capus pra moto
..............engendra no calor
..................................a pele
..........as rodovias da pele
.......................[
...................a cada grão
.............mais casta de amor
..........mais velha em estribilhos
..........................]
..........ela craquelando no corpus
.....................................da estação
.
.............sua vida de seriado
..........................escorpião
.............peça em temporada
..........perfila e petala a não palavra
.............a que não quer
................ser pedra posta
.
....................um perfume
................e não silencia
Inventada farol
O sonho à paisana
usaria o inverno
ainda um dia
A era abandona o muro
com o coração entregue
à bailarina
[cartas do vício
falta dágua que só o sol sacia]
ela instaurou-o no bailado
enquanto ele batia
Mil teses
e a explosão do romã
os botões de acetona
sob o sorriso na graviola
Inventada mirante
inventada farol
inventada rosa
dos ventos
ela foi tábua dos
experimentos
de segundos
por vidas
Vida bárbara
Andava admirada por jovens profetas
e performava como um amor antigo
No quadriculado justo dos casacos
coadjuvou vidas,
pôs vergalhões em flores,
manteve, por rodopios,
longe o cheiro podre do que já morria.
Cantou odes de sua extensão geográfica,
deu quilos grátis de alegria a quem passasse triste.
Uma manhã de buzinas,
de bexigas purulentas,
ela atendia dúvidas de peregrinos
e os olhava disfarçada de desejo,
seu desejo era por si.
Vida imensa, mesma.
Sorria goles de cerveja,
flanava o desabrigo da calçada.
Criou mitologias cubanas e deus,
deixou fiéis e foi embora com quem tem sapato
mas "quem tá de sapato não sobra
não pode sobrar"
Uirá
e eu que já tinha cagado
vi com o sol seu primeiro raio de sombra
é um cigarro que racha
qualquer coisa que entorta
uma curva de montanha
[rosada roxa e lilás de sombra]
foi um raio preto
nasceu com o café e o doudo
[espasmo do que não o é]
são tendões de araucária
sendo harpas de um
manto dourado de cidade
a cidade de breu e ouro
que é o cristo estilhaçado de andaimes
quem escala um cristo novo?
quem queima o sabão em pedra
dos meus corações aflitos?
[corações de osso musical]
magrezas de olhar farto
palma ampla
e as noites sempre começarão
deixando vago o colo sem mãe
de matriarcado de pindorama
sem mãe
matriarcado sertanejo
[abrindo estacas
no terreirão de pedra]
calça sandálias em
um cão carpinteiro
fagulhas de um latino cego
sabedor de um manto cego
que tudo é essa cordilheira árabe
esse manto mouro amordaçado
herança velada de um latido cego
raio de sombra
invenção de sol tardia
luz verbo zero