Judite Pimentel na Interzona

 

Vontade de lágrimas

 

Interzona: Na série "O livro das crueldades", a crueldade parece estar ausente, mesmo quando há uma crucificação. A doçura é cruel?

Judite Pimentel: Quando se faz uso de um tema, ou de algum conceito, como ponto de partida para uma série de trabalhos, nunca, em hipótese alguma, pensa-se em representação. É um assunto, um pretexto do qual lançar mão e, claro, algo que nos afete, encante, arrebate. A crueldade, assim como as violências, sempre me chamaram atenção por surgirem de um ambiente, de um aspecto humano pouco iluminado, incompreensível, obscuro. Toda a estética do crime, a produção da dor, a relação de poder entre os homens, essa natureza avassaladora, indomável, essa fúria, sempre me intrigou muito. Então tudo começa pelo afeto, pelo assunto que te afeta. Depois a seleção da matéria a ser trabalhada: livros, filmes, músicas, peças de teatro e rostos na rua. No caso específico da crueldade, li "O teatro da crueldade" de Artaud, "Os cantos de Maldoror" de Isidore Ducasse, "A genealogia da Moral" de Nietzsche. Filmes como "Nosferatu" de Murnau, "Joana D'arc" de Carl Dreyer. São só algumas das coisas das quais me encharquei e nas quais chafurdei para daí começar todo o processo que, na verdade, já se dá bem antes de eu encontrar a tela. Ir à tela é bem parecido com um golpe de espadachim ou com o lançamento de uma flecha ou com o ataque de um felino. Exige uma respiração, uma concentração, toda uma preparação que, na grande maioria das vezes, falha. É como acordar de um sonho fantástico e tentar contá-lo em sua riqueza de detalhes. Às vezes você até supera, mas dificilmente alcança aquelas notas daquele perfume específico. Às vezes aquele tema se ausenta, depois reaparece lá adiante, como pequenas explosões, pequenas aparições, como o surgimento de um determinado estilo em uma época em que outro predominava, como a presença de Bosch em pleno renascimento. Não pode haver nada mais doce do que uma orquídea, e um louva-a-deus-orquídea não poderia ser mais impressionante. O corpo de um inseto capturado e destroçado por um louva-a-deus-orquídea é algo que causa uma profunda impressão em minha alma. A palavra crueldade – que em seu sentido mais profundo significa rigor – se adéqua perfeitamente a essa situação. A imobilidade do louva-a-deus antes da captura, toda a sua indumentária, sua postura e sua eficiência são rigorosos, e isso tudo, todo esse espetáculo para uma transferência de força. Um corpo que se decompõe para compor outro. Então o que eu pinto não é a representação da crueldade, mas as forças que atravessam esses acontecimentos. Aprofundar-me em certos temas é como devorar e acumular forças, potencializando minha expressão.

Solidão

Interzona: O que há nas rendas que te atrai tanto? Erotismo? E nos insetos? Seria também... erotismo? Ou seria algo meramente decorativo?

Judite Pimentel: Eu gosto muito de assistir aos documentários sobre os animais e me identifico muito com aquele pássaro que cata os caquinhos brilhantes que ele encontra pelo caminho e monta um pequeno palco para, sobre ele, fazer a dança do acasalamento. As rendas são, sem dúvida, aqueles caquinhos que eu trouxe do meu passado cheio de tias e avós que usavam anáguas, babados em mangas e barras de vestidos. Elas são como a madeleine de Proust. É pintar, ver e me transportar para aquele mundo de proteção, conforto e para um tempo em que a vida era mais simples e silenciosa, sem as ânsias que desviam demais o olhar. O que me atrai nos insetos é sua inocência e determinação. Eles são o que são e fazem o que tem que ser feito simplesmente, sem firulas. Eles se ocupam da vida (polinização) e da morte (devolvendo matéria ao meio ambiente). E não há nada mais fascinante do que ver um inseto levantar vôo, elevando a carapaça e fazendo vibrar as asas transparentes, como um véu,e daquela aparente fragilidade e delicadeza acontecer a suspensão daquele pequeno corpo no espaço. Encanta-me os dispositivos da natureza para a perpetuação das espécies e a sofisticação das indumentárias e dos mecanismos e estratégias de sobrevivência, como por exemplo a construção de galerias por cupins, a captura de oxigênio por aranhas que vivem dentro d'água, a tecelagem do ninho por um pássaro ou a morte imediata do zangão após o acasalamento.

Interzona: Uma questão de Cézanne: seria a Arte, com efeito, um sacerdócio que exige homens puros que lhe pertençam integralmente?

Judite Pimentel: Não tenho absolutamente qualquer dúvida a esse respeito. O que é feito fora desse sacerdócio nunca foi, não é, nem nunca será Arte.

Interzona: Ainda com Cézanne, ele dizia que os professores "são todos uns canalhas, uns castrados, uns filhos da puta, eles não tem entranhas". Como foi seu aprendizado na pintura? Pensa, como Cézanne, que os professores são desnecessários? O aprendizado se dá copiando os grandes mestres?

O livro dos limbos

O livro das aspirações

 

A gueixa

 

Judite Pimentel: Todo aprendiz inicialmente necessita de um mestre, ou vários mestres. Depois de certo tempo, todo aprendiz se transforma em um mestre, quase que involuntariamente. O caminho que se percorre é único e, paradoxalmente, intransferível. No meu caso, eu tive alguns mestres que me apontaram caminhos que eu segui, outros que eu desisti e outros ainda que eu desviei. Todo aprendiz é potencialmente um mestre porque ele tem indicadores internos que ora concordam ora discordam do que lhe é apresentado. É necessário ter ouvidos atentos, olhos aguçados e boca fechada. Por um longo período, até ter realmente algo a dizer sobre aquele aprendizado. É bem como "A erva do diabo" de Castañeda. Com relação à pintura, eu entrei na Escola de Belas Artes esperando muito dos meus professores, mas professor nada tem a ver com mestre. Meus mestres foram mesmo os grandes pintores, que aprendi a observar muito, em longas horas de silêncio. O estudo das cores, a anatomia e a composição que eu nunca aprendi. Entendi que há distorções nas figuras que são inerentes ao meu trabalho, são aspectos que vêm com a minha constituição. A necessidade interna dessas distorções fica sem explicação, guardada naquela zona obscura dos crimes. Procurar explicações é como adentrar numa névoa. Quanto mais você entra, mais perdido fica. Não posso ter a pretensão de dizer que aprendi alguma coisa com os grandes mestres, pois eles foram grandes demais. Eles foram longe demais, e isso só foi possível pelo modo de vida que tiveram em sua época. Vivo olhando para o passado, pois o presente em nada me encanta no que se refere à produção artística. Entre os que eu amo estão Rembrandt, Veslasquez, Goya.

Interzona: Você diria que chegou a alguma coisa que poderia ser chamada de estilo próprio?

Judite Pimentel: "(...)olhar na noite o que dissimula a noite". Há momentos em que nós fazemos puras tentativas. É o aprendizado técnico. Há o momento em que é esse "olhar na noite o que dissimula a noite" que determina o caminho. É o silêncio de apenas ser, sem pensamentos, só o braço, o corpo, os olhos numa ação imediata, abrupta e selvagem. Ninguém procura ser o que já é. Assim é com o estilo.

Interzona: Há algum pintor que fez você não ter dúvidas de que a pintura seria seu destino?

Judite Pimentel: É como na floresta, não há tempo para dúvidas. Ou você caça ou é caçado. Depende da sua atenção e empenho. A coisa se dá, e quando você vê está envolvido até o pescoço. É uma espécie de encantamento, arrebatamento, sedução. O artista é como aquele pássaro curioso que atenta para um alpiste jogado no chão. Ele só vê aquele alpiste e come. Depois vê mais um e mais um e outro e quando menos espera: zás! É capturado. É um caminho sem volta e é também inevitável. Acredito mesmo naquela história de que se não fosse a arte eu estaria num manicômio ou numa cadeia. Na minha constituição há violências e estados de consciência que nada se parecem com o estado de normalidade. Acho que se os outros humanos são como eu, eles disfarçam muito bem para serem tidos como normais. Percebo com clareza lutas internas para manter a lucidez, rédeas fortes para conter os cavalos selvagens que atravessam os pastos dentro de mim com suas crinas revoltas. Para viver entre os homens é preciso cuidado. Por isso o isolamento é uma condição que se impõe à pessoa que caminha por certas paragens inexploradas. A pintura nunca foi uma escolha. Ela se deu. Se algum pintor me causou dúvidas, eu diria que foram os grandes pintores, por saber que seria um caminho difícil demais, mas nunca consegui recuar.

Interzona: É preciso dominar a técnica para ser um bom pintor?

Judite Pimentel: A técnica é uma ferramenta, mas a expressão se dá com ou sem a técnica. Eu quis dominar certas técnicas para ter a liberdade de ir para onde quisesse. Outras jamais consegui. Então tive que me virar com o que tinha, com o que sabia; acabava por achar outro caminho, um caminho totalmente novo. Isso que é fascinante nesse aprendizado.

Interzona: Seus trabalhos parecem ser extremamente metódicos, cada linha, cada traço parece ser minuciosamente planejado, mesmo as cores... É uma avaliação equivocada? Há a intervenção do acaso nas suas pinturas e desenhos?

O vidro tem a alma frágil

Judite Pimentel: Meu trabalho não tem nada de metódico. "Metódico" parece ser uma coisa que vem de fora para dentro; minha pintura vem de uma necessidade interna, inclusive as linhas, os detalhes, as cores. Os detalhes vêm de uma obsessão com coisas intrincadas, complexas, repetitivas que têm que se efetuar, como uma espécie de transtorno obsessivo compulsivo. É claro que o acaso está presente, entendendo acaso como algo que acontece independente de nossa vontade. Da nossa vontade consciente. Então pensando que existe uma vontade inconsciente, o acaso não existe aqui. Mas ele volta a existir quando pensamos numa tinta que cai sem querer ou num esbarrão ou num erro, e a partir disso o olho atento olha e vê ali uma possibilidade; outro caminho se apresenta diferente daquele inicial em que tudo parecia já definido. É fundamental respeitar esse acontecimento na pintura, esse movimento de ondas, sem impor a vontade da consciência, da racionalidade. Às vezes eu nem concordo ou gosto, mas aquilo se impõe de tal maneira que eu tenho que ceder, como a pata do livro dos conselhos.

Interzona: As paisagens não te interessam? E o abstrato?

Judite Pimentel: As paisagens sempre me encantaram.Tenho uma paixão especial pelo trabalho de Rugendas. Mas nunca consegui dominar essa técnica, que para mim é uma das mais difíceis. Como sempre considerei a alma humana uma espécie de paisagem, acabei por me emaranhar nesse intrincado de nuances; não dava tempo de sair e me dedicar às outras estruturas de paisagens. O abstrato vem antes da figura, e digo que ele está muito presente no meu trabalho, embora não seja o foco principal. Durante algum tempo eu manchava as telas antes de pintar e via as figuras lá, me chamando, querendo sair. Eu apenas as realçava e realizava aquela vontade silenciosa e eloqüente.

Interzona: Que importância tem as outras artes (cinema, literatura etc) para o seu trabalho?

Judite Pimentel: As outras artes, como cinema e literatura, são a matéria que coloco no meu espírito. Fellini é o maior de todos, é a fonte onde bebo mais. E na literatura, Castañeda revela um mundo onde passeio com tranquilidade, como um andarilho numa campina, absorto e concentrado, vivendo junto com os ventos e as paisagens inumanas.

 

 

***

 

Judite Pimentel em 11 telas e três desenhos

(mais trabalhos da autora aqui)

 

Ópera fabulosa

 

"Fui como ervas e não me arrancaram"

 

O silêncio do mundo

 

Patchwork

 

Além das nuvens

 

O amor nos tempos do colera 2

 

O amor

 

Surpresa

 

Jardim das delícias

 

Luto

 

Besouro12-2

 

Desenho 504

Desenho 510

Desenho 513

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Toda a estética do crime, a produção da dor, a relação de poder entre os homens, essa natureza avassaladora, indomável, essa fúria, sempre me intrigou muito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Encanta-me os dispositivos da natureza para a perpetuação das espécies e a sofisticação das indumentárias e dos mecanismos e estratégias de sobrevivência...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É necessário ter ouvidos atentos, olhos aguçados e boca fechada. Por um longo período, até ter realmente algo a dizer sobre aquele aprendizado. É bem como "A erva do diabo" de Castañeda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É como na floresta, não há tempo para dúvidas. Ou você caça ou é caçado. Depende da sua atenção e empenho. A coisa se dá, e quando você vê está envolvido até o pescoço. É uma espécie de encantamento, arrebatamento, sedução.