Sete questões sobre música com Barão

 

Fotografia: Ted Amorim

Interzona: Charles Baudelaire narra em Os Paraísos artificiais a história de um brilhante violonista espanhol que acompanhava Paganini em concertos pela Europa. “Faziam ambos a grande vida vagabunda dos boêmios, dos músicos ambulantes, das pessoas sem família e sem pátria. Ambos, violino e guitarra, davam concertos por onde passavam. Erravam assim por diversos países. O espanhol tinha um talento tal que podia dizer como Orfeu: ‘eu sou o mestre da natureza’.” Além de magistral, o violonista também era “um grande beberrão”, e quanto mais embriagado, melhor parecia tocar. Pergunta: se o trovador e o violão são a base, o vinho seria o terceiro vértice da tríade musical perfeita?

Barão: Bem, eu costumo dizer que o vinho inspira os homens e excita as mulheres, portanto eu vejo, sim, como algo positivo os efeitos do vinho sobre o espírito da música, se você quer realmente saber. Interessante você citar a história do violinista Paganini, que é tão misteriosa e fascinante... É preciso reavivar os mitos! O mundo anda excessivamente prático e racional pro meu gosto, e a meu ver esse tipo de atitude implica diretamente na maneira de se sentir e de se conceber arte, o que acaba culminando nessa perceptível ausência de inspiração que vem assolando a música deste século. No meu caso, especificamente, uma quantidade razoável de vinho proporciona certa vivacidade de espírito que me permite lidar muito melhor com minha própria música, aprimorando a minha relação com as idéias que me ocorrem a respeito do que me cerca, tornando minhas composições bem mais fluentes e de certo modo mais verdadeiras e deveras fiéis ao meu próprio espírito real, intensificando consideravelmente todo o processo, tornando-o bem mais, digamos, primoroso...

Interzona: Dos velhos e tradicionais aditivos para os novos:

“From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
Baby, baby, baby, I'm the electric man
Come and get a shock, I'm the electric man”

Crazy pop rock - Gilberto Gil

"Faço do meu canto a neura existencial. O conteúdo do cotidiano, o dia-a-dia da vida. A eletrônica está substituindo o coração. A inspiração passou a depender do transistor, o poeta, de aço, de poesia programada... é demais pra meus sentimentos, tá sabendo?"

Nega - Baiano e os Novos Caetanos

“Acho que os dois tipos básicos de música nativa deste país são a música negra, blues, e a música folclórica trazida da Europa (acho que a chamam de música country ou sons de West Virginia). Elas são as correntes principais da música americana de raiz. Mas parece, como há dez anos, que o que eles chamam de rock and roll é um tipo de mistura dessas duas formas. Acho que o que acontece agora é que o rock está desaparecendo. E todos estão voltando às raízes de novo, alguns estão voltando para o country, alguns para o blues básico. Acho que em quatro ou cinco anos a música da nova geração será uma síntese desses dois elementos e uma terceira coisa, e poderia confiar pesadamente, em eletrônicos, tapes. Posso prever talvez uma pessoa com muitas máquinas, tapes, aparelhos eletrônicos, cantando ou falando e usando máquinas.”

Jim Morrison (entrevista ao programa "Critique" PBS – 1969)

A eletrônica ainda é a pulga atrás da orelha da música moderna?

Barão: A música, de um modo geral, passou por um processo de evolução que considero natural, e a eletrônica faria parte disso inevitavelmente. Já que as pessoas basicamente utilizam a tecnologia pra simplificar suas vidas, então por que aprender a tocar um instrumento se você pode simular um som apertando um botão? Por que você precisa ir a uma biblioteca se você pode fazer sua pesquisa apenas clicando na porra de um simples botão? E foi com esse tipo de mentalidade e com o advento de artifícios cada vez mais modernos que a música começou a ficar confusa, perdendo-se numa profusão de combinações ilimitadas, gradativamente vendendo sua alma para a máquina e as facilidades tecnológicas que ela proporciona, acabando por nos conduzir ao atual estado amorfo da música moderna, fatalmente. Acho que já é hora de trilhar um pouco o caminho inverso... Eu sinto muita falta de boas melodias e de letras relevantes na atualidade... Não sou, de modo algum, totalmente contra a adição de elementos eletrônicos à música, não, mas penso que é preciso haver um meio termo, sabe? Pra dizer a verdade eu acho que toda a música atual carece de um retorno às suas próprias raízes, é isso.

Interzona:  Da mesma forma que dizem que há mais livrarias em Buenos Aires do que no Brasil, talvez possamos dizer que existem mais gravadoras independentes em Londres do que em todo o território brasileiro. Apesar da facilidade tecnológica atual, esse nicho de mercado continua pouco explorado. Iniciativas que unem em um só projeto apresentação musical, registro fonográfico e prensagem de discos (artefato essencial para a documentação historiográfica do grupo), são raras e geralmente temporárias. A internet é o messias que irá salvar os artistas independentes do ostracismo e esquecimento ou será que o dito bíblico continua valendo: “estreita é a porta, e apertado o caminho que leva para a vida, e são poucos os que acertam com ela”?

Barão: Tem os dois lados da moeda. Por um lado a indústria fonográfica cobrava preços exorbitantes pelo disco físico, o que era realmente inadmissível, mas em contrapartida, em minha opinião, a internet tornou a música quase totalmente descartável. Atualmente as pessoas baixam mais músicas do que geralmente conseguem escutar, e com isso acabam não dando a devida importância à sua qualidade. Antigamente, na era dos LP’s, por exemplo, as pessoas se reuniam nas casas umas das outras pra ouvir um disco recém-lançado, e o pessoal realmente se interessava em saber quem havia produzido cada disco, quem havia escrito cada canção, era um verdadeiro culto à música. Hoje em dia tudo isso vai passando batido pra maioria, o que me leva a crer que nem os próprios músicos - especialmente os já famosos - andam se esmerando tanto pra lançar um material realmente bom. Festivais como o Caça Bandas* são fabulosos, pois servem principalmente pra separar quem realmente está a fim de levar a coisa a sério de quem não está... Tem muita banda legal perdida nesse universo da internet, mas a porta do reconhecimento continua estreita pra elas. A proposta desses festivais é ótima, mas continua sendo uma iniciativa ainda muito pouco explorada. A internet ajuda muito, mas não vai salvar porra nenhuma!

*Festival do qual Barão participou com o grupo Blood Chip, primeiro ganhador de 2011, mais informações: http://noticiagrv.blogspot.com/2011/05/blood-chip-e-o-primeiro-escolhido-do.html ou  http://www.grv.art.br/cacabandas/

Inerzona: A sociedade moderna deve à Grécia antiga quase tudo. Dela também herdamos a cultura agonística – o embate salutar, os jogos, o combate discursivo e público que rege a democracia, na qual o melhor é o vencedor. Schopenhauer, porém, diz, em relação ao mercado editorial de sua época, que há uma espécie de complô entre escritores, editoras e jornalistas com o fim de fazer prevalecer “as cabeças ocas”. Prêmios como o da MTV, do Multishow etc., que privilegiam o mercado e não a arte, parecem comprovar bem essa tese, pois é evidente que os vencedores quase nunca são os melhores. Há vias musicais além da estética mercantil e de entretenimento? Ou seja: é possível e aprazível para um músico passar ao largo disso e constituir uma obra?

Barão: Durante anos foi possível conciliar as duas coisas, mas talvez devido à ruína da indústria musical, os meios de comunicação, que sempre mantiveram uma estreita relação com as gravadoras, passaram a ser ainda mais apelativos e a dar muito menos importância à boa música do que antes. Eu defendo que deve haver música pra todo o tipo de gente e pra todos os gostos, mas daí a monopolizar praticamente todo o espaço pra impor esse lixo comercial pra todo mundo já se torna um sério insulto à nossa inteligência e tolerância. Pra nós que somos do ramo da música independente e não nos encaixamos nessa estética pré-estabelecida imposta pela indústria as coisas se tornam complicadas. É uma peleja dos infernos, mas eu ainda prefiro acreditar que é possível se dar bem fazendo um trabalho realmente autêntico e de qualidade, apesar disso tudo.  

Interzona: Ainda com Schopenhauer: segundo o filósofo alemão “a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes: estas exprimem apenas a sombra, enquanto que ela fala do ser.” Linguagem universal, compreendida imediatamente, intuitivamente, a música, sem dúvida, é a mais cultuada, praticada e banalizada das artes. Os clichês abundam, e a margem de criação e experimentação é pequena. Como não ser um músico claudicante e trilhar com leveza esse campo minado?

Interzona: Segundo Tom Zé: hoje, também pelo esgotamento das combinações dos sete graus da escala diatônica [mesmo acrescentando alterações e tons vizinhos] esta prática desencadeia, sobre o universo da música tradicional, uma estética do plágio, uma estética do arrastão. Podemos concluir, portanto, que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a era do plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada.

(encarte do CD Com Defeito de Fabricação.)

A estética do plágio, da releitura, da recombinação, do sampler pode ser considerada a estética contemporânea predominante e, por isso mesmo, uma espécie de vanguarda com o pé no mainstream?

Barão: Eu discordo. É como na literatura. Muitas vezes não é a história em si, mas sim o modo como você a conta que realmente faz a diferença. Eu não acredito nesse negócio de esgotamento de combinações de escalas, não. Dizer isso é o mesmo que assumir um esgotamento criativo, na verdade. Esse pessimismo fatalista é o que está arruinando a verdadeira autenticidade da música contemporânea. Se esse tipo de mentalidade prevalecesse, iria acabar por nos conduzir a uma derrota criativa sem precedentes, e, isso sim, seria gravemente preocupante. Compor uma música pra mim é como parar o tempo... É eternizar um momento, uma noite, um sentimento, é tudo muito pessoal e autobiográfico, ao mesmo tempo que universal. As minhas canções falam sobre desejo, dor, descontentamento, esse tipo de coisa... Qualquer pessoa já viveu isso, assim como qualquer artista já sentiu e escreveu sobre isso em alguma circunstância, mas eu o faço a meu modo, e é isso que conta no final. Eu sou a favor de se rehumanizar a música, e o segredo, pelo menos pra mim, está em ser fiel a si mesmo e às suas próprias inspirações, sacou?

Interzona: Num momento em que a tecnologia se tornou uma obsessão e atinge todos os âmbitos artísticos, do circo ao avant-garde, quando músicos escondem suas fragilidades por trás de uma mega infra-estrutura pirotécnica sonora e visual, o retorno ao básico, ao primitivo, ao tribal é desejável ou, como previram e anteciparam Kraftwerk ao colocar robôs no palco, esse é de fato o futuro dá música?

Barão: Não vejo problema nas mega infra-estruturas, mas, enquanto apreciador de música, o que eu acho inconcebível é quando toda essa parafernália visual e tecnológica se torna mais importante do que a musicalidade do artista. Quanto ao futuro da música, eu escolhi acreditar que acabará rolando algo além de música totalmente robotizada, mas, para que isso aconteça, eu penso que deveriam começar a estimular as crianças a dedilhar algo além dos seus joysticks no Guitar Hero e encorajá-las a empunhar guitarras de verdade... Esse seria um bom começo.

 
Tom Zé e a Estética do Plágio