Sete questões sobre música com Negro Leo |
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Interzona: Charles Baudelaire narra em Os Paraísos artificiais a história de um brilhante violonista espanhol que acompanhava Paganini em concertos pela Europa. “Faziam ambos a grande vida vagabunda dos boêmios, dos músicos ambulantes, das pessoas sem família e sem pátria. Ambos, violino e guitarra, davam concertos por onde passavam. Erravam assim por diversos países. O espanhol tinha um talento tal que podia dizer como Orfeu: ‘eu sou o mestre da natureza’.” Além de magistral, o violonista também era “um grande beberrão”, e quanto mais embriagado, melhor parecia tocar. Pergunta: se o trovador e o violão são a base, o vinho seria o terceiro vértice da tríade musical perfeita?
Negro Leo: Não acredito nisso. De fato a droga possibilita uma experiência estética iluminadora que, ao iluminar, revela aspectos incongruentes daquilo que ilumina. Esse é talvez o poder revolucionário da droga, tem a ver com uma capacidade de desnaturalizar o mundo irremediavelmente. Essa irreversibilidade ou o cara experimenta como sublimação do real – porque senão ele enlouquece, e é aí que a droga pode adquirir um caráter quase religioso um tanto babaca – ou ele experimenta como tragédia (quando apenas é possível encarar o tédio da vida). A experiência com drogas é inesquecível. Mas não se lança uma luz em algo por essa ou aquela droga, nem uma ou outra droga é responsável por uma realização estética pujante. Esse entusiasmo com as drogas só engrossa a fila de hospitais psiquiátricos. Jobert de Carvalho e Vicente Celestino eram abstêmios. O enraizamento da idéia de arte como finalidade sem fim e do desinteresse como modo de fruição estética semearam um fértil terreno para a produção estética amparada em drogas durante o final do século XIX e todo o século XX. A estandardização da experiência estética movida à droga nas sociedades de consumo criou mesmo uma nova sensibilidade, essas festas de música eletrônica e a própria música eletrônica, que é uma qualidade de música diferente, parecem requisitar esse novo tipo de sensibilidade (movido à ecstasy e outras drogas sintéticas). Eu usei drogas por conta dos surrealistas, dos Beatles, dos tropicalistas, de uma porção de referências que justificaram o efeito da mistificação do poder criativo e revelador das drogas, que eu senti por mim mesmo e que culminaram na minha particular reordenação ética do mundo. |
Interzona: Dos velhos e tradicionais aditivos para os novos:
“From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
Baby, baby, baby, I'm the electric man
Come and get a shock, I'm the electric man”
Crazy pop rock - Gilberto Gil
"Faço do meu canto a neura existencial. O conteúdo do cotidiano, o dia-a-dia da vida. A eletrônica está substituindo o coração. A inspiração passou a depender do transistor, o poeta, de aço, de poesia programada... é demais pra meus sentimentos, tá sabendo?"
Nega - Baiano e os Novos Caetanos
“Acho que os dois tipos básicos de música nativa deste país são a música negra, blues, e a música folclórica trazida da Europa (acho que a chamam de música country ou sons de West Virginia). Elas são as correntes principais da música americana de raiz. Mas parece, como há dez anos, que o que eles chamam de rock and roll é um tipo de mistura dessas duas formas. Acho que o que acontece agora é que o rock está desaparecendo. E todos estão voltando às raízes de novo, alguns estão voltando para o country, alguns para o blues básico. Acho que em quatro ou cinco anos a música da nova geração será uma síntese desses dois elementos e uma terceira coisa, e poderia confiar pesadamente, em eletrônicos, tapes. Posso prever talvez uma pessoa com muitas máquinas, tapes, aparelhos eletrônicos, cantando ou falando e usando máquinas.”
Jim Morrison (entrevista ao programa "Critique" PBS – 1969)
A eletrônica ainda é a pulga atrás da orelha da música moderna?
Negro Leo: Se você fala em pulga atrás da orelha como inquietação, sim. Agora, se tem o sentido de desconfiança, não acho, não. Quando a gente fala em eletrônica deve tomar o cuidado de considerar o que é meio e o que é obra, digo isso porque, embora acredite que uma técnica determine seu modo de realização, não se deve esquecer que, às vezes, apenas uma parte do processo de liberação do repertório significante de uma técnica chega à luz, a outra é mantida como se seus efeitos nunca tivessem sido sentidos. Assim, os tipógrafos do século XVI imitavam modelos de caligrafia de um momento anterior. Um teclado tenta simular timbres de instrumentos acústicos. Não é demais pensar que a realidade inteira tornou-se eletrônica, e, no entanto, ela ainda não chegou a ser experimentada com radicalidade. Eu estou querendo dizer que você pode gravar um quarteto de cordas, mas pode “criar” sons que nunca foram ouvidos, pode manipular frequências e timbres que nunca foram sondados. A reprodução fonográfica abriu caminho para a música concreta e a eletrônica abriu caminho para a imaginação. A gravação do som, sua impressão (o registro) e sua reimpressão numa mídia de alta difusão são partes do processo social de produção da música moderna. O eletrônico, em certo sentido, é a destruição da técnica de reprodução fonográfica em todas as suas etapas. Você pode criar um som digitalmente, registrá-lo numa mídia igualmente digital, um arquivo de computador, e atualizar aquilo infinitamente num mercado regulado ou não. No caso Wikileaks, os sítios-espelhos são um bom exemplo. A eletrônica é a realidade em que qualquer música se movimenta há décadas, mas raros artistas assimilaram suas possibilidades criativas, sua novidade na elaboração do som. As experiências da música acadêmica e da música popular com a eletrônica parecem se encontrar em algum lugar onde essas próprias definições carecem de sentido. No mais, a tese um tanto formalista de Mcluhan, segundo a qual o meio é a mensagem, dificilmente vai ser observada na eletrônica ou em qualquer outra técnica, sem ressalvas de natureza econômica e cognitiva. E é sobretudo nesse sentido que entendo a eletrônica como uma pulga atrás da orelha da música moderna, parafraseando Augusto de Campos citado por Caetano Veloso, “quem decide o que é melhor pra música são os melhores músicos”, o mercado cuida de sua própria saúde. |
Interzona: Da mesma forma que dizem que há mais livrarias em Buenos Aires do que no Brasil, talvez possamos dizer que existem mais gravadoras independentes em Londres do que em todo o território brasileiro. Apesar da facilidade tecnológica atual, esse nicho de mercado continua pouco explorado. Iniciativas que unem em um só projeto apresentação musical, registro fonográfico e prensagem de discos (artefato essencial para a documentação historiográfica do grupo), são raras e geralmente temporárias. A internet é o messias que irá salvar os artistas independentes do ostracismo e esquecimento ou será que o dito bíblico continua valendo: “estreita é a porta, e apertado o caminho que leva para a vida, e são poucos os que acertam com ela”?
Negro Leo: Não é tanto uma questão de independência e sim de reorganização do mercado. Neste momento a internet é decisiva para a consolidação de certa independência. O Napster foi uma realidade possível enquanto a internet era testada economicamente em escala global, quando as transações comerciais de música pela internet eram desreguladas. Hoje há maneiras de proteger um arquivo contra a pirataria, mas a indústria fonográfica jamais se recuperará desse golpe; ao contrário, para manter parte do que perdeu, é obrigada a entrar na roda dessa nova reorganização do mercado e cortar gastos, a começar pela cocaína. Há acordos comerciais entre o Youtube e gravadoras, a coisa está mudando. As barreiras políticas são um exemplo de regulação pelo estado, basta o caso Google-China como exemplo. Outras regulamentações econômicas estão em curso. Nenhum meio de comunicação é livre a despeito do modo de produção econômico, essa coisa da internet como “messias dos independentes” sempre foi mistificação. Sem dúvida a internet não vai redimir os esforços por independência, mas ficou mais fácil construir redes comerciais paralelas, formar público paralelamente e construir uma crítica alternativa dos produtos da indústria. Enfim, eu acho que a indústria da música está mudando, e isso tem a ver com a internet sim, tem a ver com a presença revolucionária de uma nova tecnologia, com as transformações sociais que desencadeia. |
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Inerzona: A sociedade moderna deve à Grécia antiga quase tudo. Dela também herdamos a cultura agonística – o embate salutar, os jogos, o combate discursivo e público que rege a democracia, na qual o melhor é o vencedor. Schopenhauer, porém, diz, em relação ao mercado editorial de sua época, que há uma espécie de complô entre escritores, editoras e jornalistas com o fim de fazer prevalecer “as cabeças ocas”. Prêmios como o da MTV, do Multishow etc., que privilegiam o mercado e não a arte, parecem comprovar bem essa tese, pois é evidente que os vencedores quase nunca são os melhores. Há vias musicais além da estética mercantil e de entretenimento? Ou seja: é possível e aprazível para um músico passar ao largo disso e constituir uma obra?
Negro Leo: Olha, essa coisa do “complô” é natural porque a produção é organizada e no capitalismo a livre concorrência é um mito. O monopólio é uma coisa terrível, mas se você pensar bem, aquilo que é democrático no capitalismo, que nivela tudo pelo lucro, por mercados consumidores e que faz emergir o grotesco, o popular, justamente por demanda popular, pela existência desse mercado consumidor, pode servir também ao controle da produção através de uma espécie de cartelização cognitiva, vide funk na programação dominical de todas as emissoras de tv. Ao mesmo tempo, eu não acredito em estética mercantil, ou pior, eu só acredito em estética mercantil, ou você conhece algum artista que não pretenda “trocar” sua obra no mercado? O artista no capitalismo precisa incorporar o mercado como um dado estratégico na sua produção, não é um problema de diluição da obra ou de concessões, mas de estratégia que em nenhum tempo foi tão necessária à produção estética. Sem dúvida, em qualquer tempo, a arte aconteceu dentro de limites sociais precisos e convencionou precisamente aquilo que chamou arte a cada momento. Eu acho que só é possível constituir uma obra num contexto dado, e dado o contexto de produção, não se pode passar ao largo dele se se espera produzir alguma coisa; logo, se um artista pensa em produzir fora desses limites, nem sequer o reconhecimento social de artista ele vai experimentar. A coisa está mudando um pouco: é estranho que o mercado de shows no Rio de Janeiro seja um tanto auto-regulado e dependente de iniciativa privada de alto risco. O “grande capital” foi drenado da música com o colapso das grandes gravadoras que articulavam toda a cadeia produtiva de música (do disco ao show). Nesse vácuo, alternativas de reorganização do mercado de música vem sendo testadas, como o “Fora do Eixo”, que funciona como uma rede empresarial que dá esteio aos artistas independentes, e os novos mecanismos de financiamento como o crowdfunding. Essa coisa do melhor, do vencedor, na sua pergunta, eu acho complicado porque a recepção estética, por mais que se justifique por estatísticas sociais, é um mistério de identidade que não pode ser reduzido à identificação de classe, tipo “moro em uma favela, logo gosto de funk, rap, pagode”. Esses prêmios servem para mostrar o quanto se esconde atrás da cultura de massas a homogenização da experiência estética. Justin Biber e Michael Jackson são heróis trans-sociais, acima do bem e do mal da luta de classes. |
Interzona: Ainda com Schopenhauer: segundo o filósofo alemão “a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes: estas exprimem apenas a sombra, enquanto que ela fala do ser.” Linguagem universal, compreendida imediatamente, intuitivamente, a música, sem dúvida, é a mais cultuada, praticada e banalizada das artes. Os clichês abundam, e a margem de criação e experimentação é pequena. Como não ser um músico claudicante e trilhar com leveza esse campo minado?
Negro Leo: Tem que ser cínico e aprender a sorrir amavelmente. |
Interzona: Segundo Tom Zé: hoje, também pelo esgotamento das combinações dos sete graus da escala diatônica [mesmo acrescentando alterações e tons vizinhos] esta prática desencadeia, sobre o universo da música tradicional, uma estética do plágio, uma estética do arrastão. Podemos concluir, portanto, que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a era do plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada.
(encarte do CD Com Defeito de Fabricação.)
A estética do plágio, da releitura, da recombinação, do sampler pode ser considerada a estética contemporânea predominante e, por isso mesmo, uma espécie de vanguarda com o pé no mainstream?
Negro Leo: Definitivamente não concordo com Tom Zé porque a música é um problema do ouvido antes de ser matéria da música tradicional. Eu chamo de ouvido a própria linguagem da música compreendida tridimensionalmente como aparelho auditivo, memória e cultura. O ouvido transcende a barreira da formação musical conformado nela, mas minha abordagem é na direção de um ouvido triplamente qualificado enquanto sentido, memória e educação musical (cultura). Ao ouvir um som qualquer, o ouvido solicita, simultaneamente, essas três qualidades. As revoluções harmônicas, as revoluções no campo da teoria musical foram possíveis apenas porque o ouvido já foi colocado num estado de abertura. Primeiro o som como sentido, depois como resultado de abstração lógica e herança cultural. Bem, isso é uma aparente contradição da apreensão simultânea, mas, na verdade, esse novo processo cognitivo criou uma abertura real pro ouvido, pra sua manifestação originária enquanto sentido, manifestação, por assim dizer, pré-mnemônica, primitivo-utópica. É lógico que este processo está em curso a mais de cem anos e que, portanto, já se cristalizou em memória e formação musical. Sendo assim, não devemos buscar a novidade onde ela já é um dado. De qualquer maneira a abertura permanece como esse novo processo cognitivo onde a música deve se virar. Se o critério de Tom Zé é “combinações dos sete graus da escala diatônica (mesmo acrescentando alterações e tons vizinhos)”, eu realmente não vejo nenhuma vanguarda na estética do plágio. A preocupação fundamental da música deve ser o som, o som bruto. É assim desde sempre, mesmo antes da abertura da técnica fonográfica ou de Russolo. Beethoven é um grande artífice do ouvido também porque inventou diversas modalidades de orquestração. A estética do plágio, explicada por Tom Zé, é de uma teleologia absurda, nos coloca diante do fim da música (tradicional), um impasse que ele propõe resolver pela recombinação de todo repertório musical do passado. Não haverá fim da música nem em câmaras anecóicas. |
Interzona: Num momento em que a tecnologia se tornou uma obsessão e atinge todos os âmbitos artísticos, do circo ao avant-garde, quando músicos escondem suas fragilidades por trás de uma mega infra-estrutura pirotécnica sonora e visual, o retorno ao básico, ao primitivo, ao tribal é desejável ou, como previram e anteciparam Kraftwerk ao colocar robôs no palco, esse é de fato o futuro dá música?
Negro Leo: Olha, é engraçada essa pergunta no contexto de minhas últimas apresentações, porque em maio do ano passado eu juntei vários músicos e batizei a banda de Ideal Primitivo. O conceito de ideal primitivo estava relacionado a toda a problemática do ouvido, ao free jazz, etc, tinha a ver com um retorno àquilo, na música, que é antes da memória, ao estado bruto da audição, era uma referência ao Ornette Coleman, aos seus harmolodics e harmonic unison, ao Russolo, ao Guilherme Vaz, que eu acabara de conhecer. Quando resolvi usar o nome ideal primitivo, foi porque, como não sou letrado em música e não domino a técnica de nenhum instrumento, preciso muito da memória pra arquivar um conhecimento produzido, uma música, e os músicos, letrados, por sua vez, não precisam da memória, podem acessar uma informação na partitura, na teoria. Mas o dado é que eles, liberados da memória, podem se entregar ao livre improviso, por assim dizer, uma atividade pré-mnemônica. O livre improviso e a memória estão numa relação tal que a música liberada da memória através da escrita necessita retornar sob formas primitivas anteriores à memória como maneira de afirmar, num mundo cada vez mais letrado, a contingência da arte. Não se trata propriamente do primitivo etnográfico, mas do primitivo utópico (www.myspace.com/idealprimitivo). Mas isso, pra mim, justamente ao contrário da sua pergunta, é algo possível justamente pelo avanço tecnológico. A possibilidade do registro fonográfico abriu caminho para a gravação de sons inimagináveis na música, quer dizer, a técnica de reprodução do som criou uma nova sensibilidade, uma possibilidade de recepção e produção estéticas de outra qualidade, que incorporou essa abertura às novas sonoridades. Agora, não existe uma única direção para o futuro da música, isso não existe até porque o repertório da música tradicional ainda não está esgotado. Uma abordagem a partir do ouvido é sempre mais realista. Eu vou gravar um disco de composições tradicionais, meus autoestudos, vamos ver se ele vai aparentar algum esgotamento. |
http://www.myspace.com/idealprimitivo |
Tom Zé e a Estética do Plágio |